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Celebridade no passado, Carlos Gomes, autor da ópera 'O Guarani', volta a ser reconhecido

No dia 2 de dezembro, sua ópera 'O Guarani' teve a primeira apresentação brasileira, no Rio de Janeiro, na presença do imperador D. Pedro II

Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio
Atualização:

Antonio Carlos Gomes era uma celebridade. Multidões seguiam para o Largo da Carioca, onde o compositor estava hospedado, em um quarto sobre a padaria de Julio de Freitas. Era agosto de 1870. E todos queriam ver o autor de O Guarani. “Chovem-lhe felicitações, não cessa de ser abraçado, beijado, enfim, é um verdadeiro delírio”, anotou o Diário de Notícias, que diariamente acompanhava a rotina do artista.

O Guarani, baseado no romance de José de Alencar sobre a improvável história de amor entre o índio guarani Peri e a jovem portuguesa Ceci, havia estreado em março daquele ano com sucesso de crítica e público no principal templo da ópera italiana, o Teatro Alla Scala de Milão. No dia 2 de dezembro, teria igual sucesso em sua primeira apresentação brasileira, no Rio de Janeiro, na presença do imperador D. Pedro II. Tornou-se símbolo de ópera brasileira e a mais célebre produção de seu autor.

O compositor Carlos Gomes Foto: Acervo Estadão

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Carlos Gomes nasceu em Campinas, no interior de São Paulo, em 1836. Estudou com o pai, Maneco, músico importante do cenário artístico paulista, antes de seguir para o Rio de Janeiro. Lá, matriculou-se no Conservatório Nacional de Música. E em seguida integrou a Imperial Academia de Música & Ópera, recém-lançada com o objetivo de apoiar a criação de óperas brasileiras, com temáticas nacionais e escritas em português.

Coisas de Brasil: o responsável pelo projeto, José Amat, era um empresário espanhol e o elenco da companhia era formado quase que exclusivamente por cantores estrangeiros. Mas a Academia é um capítulo ainda a ser mais bem explorado da história brasileira. Autores como Quintino Bocaiúva e Machado de Assis lá trabalharam, por exemplo, adaptando para o português óperas italianas e operetas espanholas. E, de qualquer forma, foi nesse contexto que Gomes criou suas duas primeiras óperas, A Noite do Castelo e Joanna de Flandres, ambas com textos em português.

Em seguida, com bolsa do Conservatório Nacional, o compositor partiu para a Itália. Em Milão, não foi aceito como aluno do conservatório local, mas teve aulas particulares com alguns dos principais professores da instituição. Escreveu duas revistas, Se Sa Minga e Nella Luna, e conquistou fama o suficiente para conseguir estrear O Guarani no Scala. Para tanto, contou com ajuda financeira do império brasileiro. Não por acaso. Durante o Segundo Reinado, a arte foi vista como uma forma de emancipação, como uma ferramenta na busca por uma identidade nacional. Como diz a professora Lilia Moritz Schwarcz em As Barbas do Imperador, desenhava-se um romantismo à brasileira, no qual se reimaginava a história do Brasil “tomando como modelo uma história de vultos e grandes personagens sempre exaltados tal qual heróis nacionais”, em especial os indígenas. O Guarani se encaixava perfeitamente no modelo.

Os termos da bolsa conquistada por Carlos Gomes para estudar na Europa previam o retorno ao Brasil, onde daria aulas do Conservatório Nacional. Mas o compositor permaneceria na Itália, onde toda a sua carreira acabou se desenvolvendo. Depois de O Guarani, ele escreveu Fosca, Salvador Rosa, Maria Tudor, Lo Schiavo, Condor, Colombo. Nem todas foram sucesso. Mas seu nome seguiu importante na cena musical italiana. Não é patriotada, ainda que não faltem hagiografias nacionalistas no modo como a história do compositor foi contada ao longo do século 20. Aqui, basta olhar os números: entre 1870 e 1880, Gomes foi o compositor mais apresentado em Milão, ficando atrás apenas de Giuseppe Verdi e à frente de todos os seus contemporâneos.

Na verdade, a importância de Carlos Gomes para o próprio desenvolvimento da ópera italiana hoje é amplamente conhecida. Quando o compositor chegou à Itália, o gênero passava por um momento de transição. Verdi seguia como o grande nome da cultura italiana, mas já compunha menos do que no início da carreira. Ao mesmo tempo, uma nova geração de autores, conhecidos como scapigliatti (descabelados), queria reformar a arte no país, mas ainda não havia conseguido encontrar de fato que cara essa nova criação artística teria. Nesse período, Gomes foi o compositor mais original, influenciando nomes como Amilcare Ponchielli, autor de La Gioconda, e Pietro Mascagni, cuja Cavalleria Rusticana segue viva no repertório.

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O ocaso de Carlos Gomes costuma ser associado à proclamação da República. Artista muito ligado ao império, ele teria então sido deixado de lado pelo novo status quo político. Na verdade, a diminuição do interesse pela sua obra é anterior, e se não é possível descartar o elemento político, é necessário reconhecer também razões artísticas: o cenário musical brasileiro já não tinha a ópera como ponto central, assim como a ideia de um nacionalismo musical – que alcançaria na Semana de Arte Moderna seu ponto mais bem acabado – teria dificuldade em encontrar lugar para um compositor que, mesmo tratando de temas nacionais em algumas de suas obras, escrevia óperas em italiano e dentro de uma estética considerada então “europeia”. Carlos Gomes morreu em 1896, pouco depois de resolver voltar em definitivo ao Brasil, aceitando convite para dirigir um novo conservatório de música em Belém, do Pará.

Dramas pessoais

O compositor e maestro italiano Pietro Mascagni relembra em sua autobiografia uma viagem ao Brasil em 1922 para dirigir, no Rio de Janeiro, uma produção da ópera O Guarani, de Antonio Carlos Gomes. Na ocasião, passou também por São Paulo, onde visitou o recém-inaugurado monumento em homenagem ao colega brasileiro, na Praça Ramos de Azevedo. Surpreendeu-se, no entanto, com a fisionomia da estátua. Certo de que ela pouco se parecia com Carlos Gomes, a quem havia conhecido na Itália, pediu uma audiência com o então presidente de província Washington Luís, que determinou a abertura de uma investigação. Dias depois, o resultado provocaria constrangimento: o busto reproduzia na verdade as feições do general Pinheiro Machado, troca que nenhum dos ilustres presentes à inauguração havia percebido.

A história é significativa da relação que o Brasil mantém com a obra de Carlos Gomes. Se seu nome é conhecido e digno de homenagens, o que de fato se sabe a respeito dele é muito pouco. Isso tem a ver com um processo de canonização do artista ao longo do século 20. A historiografia, com poucas exceções, fez dele um herói injustiçado, perseguido, e ainda assim sem jamais abrir mão de escrever música que fosse arma na defesa de sua pátria. Não foi por outro motivo que a ditadura militar escolheu a abertura de O Guarani como introdução à Voz do Brasil, apostando em um olhar oficialesco, empoeirado, que não dá conta da real dimensão do artista.

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A vida pessoal de Carlos Gomes esteve repleta de incidentes. Na infância, perdeu a mãe, assassinada – o pai é um dos suspeitos, mas nunca se chegou a uma conclusão a respeito (o inquérito sobre o crime desapareceu). Na vida adulta, lidou constantemente com dívidas, apesar da ajuda financeira do governo brasileiro, que não hesitava em criticar quando lhe faltava apoio, e do sucesso de suas obras. Viveu um divórcio rumoroso, além de ter perdido três filhos. Esteve sempre atormentado em busca de temas para suas óperas. E manifestou constantemente em sua correspondência a sensação de que o mundo conspirava contra seu talento – o que nem sempre os fatos corroboram, muito pelo contrário. Para Carlos Gomes, o mundo era um lugar hostil.

É esse personagem, muito mais rico e repleto de nuances, que agora começa a ser resgatado, sem heroísmos ou patriotadas. Sua história também nos coloca em contato com figuras fascinantes da história brasileira, como o engenheiro André Rebouças ou o Visconde de Taunay; e nos oferece um olhar sobre a realidade política e artística do Brasil da segunda metade do século 19. 

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