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Casa de MPB faz um brinde por noite à saúde de Belchior

Por trás dos rituais do Fino da Bossa, um novo clube de excelência musical de Pinheiros, está a história de Raul Corrêa

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Chega o instante em que a música para e o cantor pede a palavra enquanto o garçom serve à mesa de cada cliente copinhos com doses de rabo de galo. Um brinde coletivo será feito a Belchior – ele mesmo, o cantor cearense morto em 2017 –, alguma história será lembrada e a banda, o artista e, nas melhores noites, a plateia toda cantarão juntos A Palo Seco, Como Nossos Pais, Sujeito de Sorte> ou Velha Roupa Colorida.

É um ritual cheio de razões e com uma canção de Belchior obrigatória no repertório de todo artista que sobe no palco daquele luxuoso clube de Pinheiros chamado de forma reverencial Fino da Bossa – Canção de Autor. Até aqui ninguém havia pensado em registrar o nome do programa que Elis Regina e Jair Rodrigues apresentaram na TV Record, entre 1965 e 1967.

Raul Correia é o dono da casa de shows Fino da Bossa, uma raridade voltada à música brasileira Foto: Alex Silva/Estadão

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O homem que investiu tempo, sonhos e dinheiro para dar aos defensores da canção brasileira um teto inspirado nos clubes de jazz de Nova York é Raul Corrêa da Silva. Sua casa pequena, com um piano de armário Steinway e uma bateria Pearl no palco de cor quente e fundo acortinado contraposto à plateia de até 44 pessoas cobertas por uma luz adormecida, parece mesmo abraçar quem chega pelo número 473 da Avenida Brigadeiro Faria Lima. Alguns minutos ali e, talvez pelo despudor da sala que conta com um segundo ambiente ao lado conjugado a uma galeria de arte com exposição permanente, qualquer opulência se torne mais leve.

O Fino só abre às quartas e quintas e funciona rigorosamente das 20h30, quando o show começa, às 23h, quando a noite é encerrada para Raul ter tempo de se despedir dos amigos e funcionários, chegar em casa e dormir o suficiente para estar bem em sua empresa de auditoria às 8h da manhã seguinte. “Mas, enquanto as pessoas estão lá, quero que vivam a experiência”, ele diz.  Os garçons oferecem drinks com direito a um “chorinho” generoso, o som que chega do palco parece sair de um estúdio e o rabo de galo, o drink dos botecos criado nos anos 50 que Belchior não teve tempo de brindar com o amigo porque sumiu no mundo antes de cumprir a promessa, é de graça. Sem querer ganhar mais dinheiro do que já tem – dos R$ 90 cobrados na entrada, 30% pagam o Ecad e o resto vai para o artista – Raul consegue fazer do Fino uma extensão de sua sala, e isso não é poesia.

Veja a entrevista que Belchior deu ao jornal em26 maio 1988e omaterial preparado pelo Acervo. Foto: Estadão Acervo

Com 66 anos até a próxima segunda, Raul é paulista de São José dos Campos, mas crescido em São Paulo, filho de pai contador,sócio de uma empresa de auditoria, casado com Vera Havir, dona da New Gallery, pai de três filhos, corintiano inegociável, formado em Ciências Contábeis, Administração de Empresas e Direito e tem a gregária mania de, mais do que gostar de música, querer abrir caminho para fazê-la soar pelo maior tempo e espaço possíveis. Talvez por isso ele tenha produzido com dinheiro do bolso um disco que Carlinhos Vergueiro lançou em 2000 chamado Contra Ataque, Samba e Futebol. “Depois de ouvi-lo tocar em casa Nação Corinthians, eu disse que tinha a obrigação de gravar aquilo.” Mas Carlinhos respondeu que as gravadoras não se interessariam. “Ok”, respondeu Raul, “eu faço”. E talvez pelo mesmo motivo ele tenha mantido por 25 anos, na sala com piano de meia cauda de sua casa, um sarau secreto para onde iam artistas e amantes de música sob uma única condição: nada de fotos, vídeos nem gravações. Assim, adentrou madrugadas ouvindo, ao lado de amigos e da mulher, gente como Celso Viáfora, MPB 4, Juca Novaes, Zé Rodrix, Bruna Caram, Mona Gadelha, Guarabyra, Belchior e o norte-americano Steve Ross, o “príncipe dos cabarés de Nova York”. O que aconteceu por lá, morreu por lá. Ou viveu apenas lá.

Detalhe da série de imagens nocontato fotográficomostram a sequência do pensamento do fotógrafo ao registrar as imagens do cantor. Foto: Waldemar Padovani / Estadão

A história de Raul passa pela plateia do Teatro Record-Augusta, 1973. Aos 18 anos, fã de Walter Franco, ele soube que havia um programa de TV sendo gravado em São Paulo com o nome de uma das músicas do compositor lançada naquele ano, Mixturação, com direção de Nilton Travesso e Walter Silva. Raul correu para o teatro achando que veria Walter, mas acabou se deparando com um povo cheio de cabelos e do qual não sabia nada: “Agora, com vocês, uma ex-jogadora de basquete que está começando a cantar: Simone!”, dizia Walter. “Agora, um grupo que está gravando seu primeiro LP, Secos & Molhados!”. “Agora, Belchior, Ednardo, Rodger, Tedi...” Um após o outro, eles conquistavam a outra parte do cérebro lógico de Raul com canções que entravam em sua cabeça a golpes de martelo. “Era assim, como pancadas.” A amizade com Belchior se manteve até o fim, alimentada em camarins, restaurantes e no sarau secreto. Entre os poucos projetos que Raul não conseguiu realizar talvez esteja o de tirar o amigo dos vinhos por uma noite e levá-lo aos prazeres de um legítimo rabo de galo, mas feito com vermute importado e cachaça Salinas, exatamente como os que oferece no Fino pedindo a todos que levantem seus copos e cantem, sãos, salvos e fortes, à saúde de Belchior.

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