Carnaval esquece Adoniran; Noel tem biografia embargada

No ano do seu centanário, os grandes poetas da canção brasileira são esquecidos de uma maneira ou de outra

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Por Lucas Nobile
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SÃO PAULO - "Não tenho herdeiros, não possuo um só vintém/ Eu vivi devendo a todos, mas não paguei ninguém." Em 1932, cinco anos antes de sua morte, Noel Rosa compôs o antológico samba Fita Amarela, relatando seus desejos para o dia de sua derradeira despedida. Agora, em 2010, ano em que vai se comemorar seu centenário (no dia 11 de dezembro), Noel jamais poderia imaginar que justamente seus herdeiros seriam os pivôs de um entrave que há quase duas décadas priva o público de ter acesso à vida e à obra do Poeta da Vila.

 

 

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Em 2008, passados 70 anos da morte de Noel, seu cancioneiro entrou em domínio público. Porém, toda tentativa de esmiuçar a vida do compositor (não só dele, como de qualquer outra pessoa, de acordo com a constituição brasileira), de maneira não autorizada por seus herdeiros legítimos, inevitavelmente naufraga sem amparo jurídico por representar violação ao direito à privacidade.

 

Nessa celeuma esbarra o trabalho mais completo já feito sobre vida e obra do compositor de Vila Isabel, Noel Rosa - Uma Biografia, de João Máximo e Carlos Didier. Lançado em 1990, pela Editora UnB, o livro ficou disponível em catálogo até 1994, vendendo cerca de 15 mil exemplares. No período seguinte - até hoje -, houve várias tentativas para reeditar a biografia, com editoras como José Olympio, Ed. 34, Cosac Naify e, por último a Ediouro, mas nenhuma vingou.

 

Depois da morte de Noel, no dia 4 de maio de 1937, todo seu material ficou sob a tutela de sua esposa Lindaura, que faleceu apenas em agosto de 2001. Assim que a viúva morreu, duas sobrinhas do Poeta da Vila, Irami Medeiros Rosa de Melo e Maria Alice Joseph (filhas do irmão de Noel, Hélio Rosa) apareceram para reivindicar a herança do tio. Afirmando que Noel nunca fora casado com Lindaura, e que elas eram as verdadeiras herdeiras, ambas moveram um processo contra os autores da biografia e a UnB, alegando invasão de privacidade da família Medeiros Rosa.

 

"A gente estava dentro da lei, mas tem essa coisa, que surgiu com a constituição de 88, de que não se pode tocar na vida privada. É fácil fazer biografias cor-de-rosa. Nosso livro não é sensacionalista, apenas aborda pontos nevrálgicos da vida do Noel, como o suicídio da avó e o acidente no queixo, fundamental para compreender o estigma do gênio. É como a biografia do Roberto Carlos. No fim das contas, vão vetando o acesso dos brasileiros às informações. Vivemos na escuridão, na era do controle. Sem contar que temos fotos e a certidão do casamento de Noel com Lindaura", diz o autor da biografia Carlos Didier.

 

"Lindaura foi uma lavadeira. O livro esmiúça nossa vida privada, botou minha família na lama. Isso é inveja, não conheço os autores, mas os comentários deles não me atingem. Sem o livro, eles devem estar bem tristinhos. Confio incondicionalmente no meu genro, que cuida de tudo isso, não vou mais me envolver, já estou com uma certa idade. Mas não tenho pressa, nunca precisei de direito autoral para sobreviver. É tudo uma questão de sentar e negociar", responde por telefone Irami, sobrinha de Noel.

 

Por causa do embargo, a biografia que representa o mergulho mais profundo e vertical sobre a figura de Noel Rosa tornou-se artigo de colecionadores ou endinheirados. Para se ter uma ideia, em janeiro, o site estante virtual apontava sebos que vendiam o livro a R$ 400. Hoje, paga-se R$ 290 por um exemplar.

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Para piorar o cenário, os autores João Máximo e Carlos Didier afastaram-se totalmente e não se falam desde 1997. "Posso garantir que este livro nunca mais será relançado. Eu entendo que não bastaria apenas mais uma reimpressão. Teríamos de reparar erros que existem e dar uma enxugada na extensão do livro. Eu cheguei a procurar o Didier por várias vezes, mas ele não atendeu. Hoje não seria mais possível trabalharmos com a mesma harmonia de antigamente", esclarece João Máximo.

 

Porém, pode haver ainda esperança em relação a um relançamento da biografia. Segundo Didier, há pouco tempo ele recorreu a Paulo Roberto Pires, da Editora Agir, para que ele intermediasse uma reaproximação com Máximo. "É claro que eu quero que este livro saia novamente. Meu problema com o João não foi superado, mas Noel Rosa é superior a isso", explica Carlos Didier.

 

Maloca para todos

 

Se a biografia de Noel Rosa corre o risco de nunca mais ser publicada, condenando a atual e as futuras gerações a não saberem quem foi o autor de pérolas como Com Que Roupa, Gago Apaixonado, Palpite Infeliz e Feitio de Oração, não se pode dizer o mesmo do livro que perfila por completo outro compositor, cujo centenário também se comemora neste ano: João Rubinato, conhecido por todos como Adoniran Barbosa. Por uma falha infeliz, nenhuma escola de samba quis aproveitar como tema o centenário do autor de Saudosa Maloca (leia abaixo), mas, em compensação, acaba de ser relançado Adoniran - Uma Biografia (Ed. Globo).

 

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Publicado originalmente em 2004, o livro apresenta o retrato mais fiel de Adoniran já realizado até hoje, justamente por aliar a escrita leve do lado jornalista de Celso de Campos Jr. ao rigor de pesquisa, graças à faceta de historiador do autor.

 

Ao contrário da biografia de Noel, desde que teve a ideia de escrever o livro, em 2001, quando encontrou o acervo de Adoniran literalmente escondido no cofre do Banco do Estado de São Paulo, na Praça Antonio Prado, Campos Jr. sempre contou com total colaboração da herdeira de Adoniran, a filha Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa. "Além da família do Adoniran, tive a ajuda de muita gente. Ele cantou as transformações de São Paulo e sua história precisa ser contada ao público", diz Campos Jr.

 

"Eu tenho um carinho muito especial por todos os trabalhos feitos sobre meu pai, principalmente pela do Celso. Ele é muito meu amigo e virou quase que um sobrinho meu. Desde a primeira vez que ele veio ao Rio para me consultar sobre o livro, eu topei logo de cara pela maneira de ele falar e se dedicar à obra do meu pai", conta Maria Helena, que administra o acervo do pai e aguarda propostas de patrocínio para criar o museu Casa Adoniran Barbosa.

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Noel Rosa é tema da Vila Isabel

 

Se em relação à vida retratada em biografias caudalosas Adoniran Barbosa tem, no momento, muito mais sorte do que Noel Rosa, já que o livro em sua memória acaba de ser relançado, no sambódromo a situação é completamente inversa. No centenário dos dois grandes compositores, ponto para a Unidos de Vila Isabel que prestará merecido tributo a seu maior poeta, no Rio de Janeiro. Já em São Paulo, nenhuma das 14 escolas do grupo especial renderá homenagem ao maior sambista de sua terra. Algo lamentável e justificado por tempos em que patrocínios são o primeiro critério na definição de um tema.

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A Vila Isabel, que leva o enredo Noel: A Presença do Poeta da Vila para a Marquês de Sapucaí, com samba composto por Martinho da Vila, quase deixa a efeméride em torno de Noel passar em branco. No ano passado, a escola consultou o sambista, que completou 72 anos na última sexta-feira, para homenageá-lo, mas ouviu do próprio Martinho qual seria a opção mais pertinente. "Fiquei envaidecido, mas disse que seria melhor homenagear a estrela maior da Vila, o grande Noel. Em relação ao Adoniran, acho um grande vacilo das escolas, assim como fez a Mangueira com o Cartola em 2008", diz o compositor e cantor. "Estou muito triste com São Paulo, ninguém me procurou. Estou com 72 anos, já estou no tempo da nostalgia, mas as escolas mudaram muito, não fazem mais sambas espirituosos", lamenta Maria Helena sobre a ausência de um enredo sobre seu pai Adoniran.

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