Canto lírico sofre com falta de incentivo

Temporadas irregulares, falta de planejamento e desprezo pelos artistas nacionais fazem da carreira de cantor, no Brasil, um enorme desafio

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Por Agencia Estado
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Cantores começando a carreira muito cedo, aventurando-se por repertórios inadequados a suas vozes, em alguns casos cantando em excesso. As situações acima são comuns, tanto no Brasil como no exterior, entre os nomes da geração que aos poucos substitui a de Pavarotti, Carreras e Domingo, cada vez mais próximos da aposentadoria. Mas se lá fora a superexposição abrevia carreiras, no Brasil, como afirmam maestros e cantores, a questão é outra. A falta de oportunidades, segundo eles, mostra que o mercado de trabalho sofre com a ausência de incentivo e de uma política cultural para a área. Um quadro, que eles mesmos apontam, está mudando. Mas ainda está longe do ideal. Do momento em que decide se dedicar ao canto até alcançar posição de destaque nos principais teatros do País, o cantor lírico percorre um longo caminho. Horas de estudo diário que o acompanham para o restante da vida, ensaios, concursos, audições, performances. "É um trabalho que exige paciência, disciplina, determinação, força de vontade e a capacidade de entender que, da mesma forma que se chega ao topo, se cai no esquecimento", diz a soprano Céline Imbert. "Não há idade para se começar a estudar canto, mas para se tornar um bom cantor, é necessário muito tempo", comenta D. Leilah Farah, figura de proa no ensino de canto no Brasil. "E, além disso", aponta o especialista em música lírica Sérgio Casoy, que há mais de 30 anos acompanha de perto a cena operística brasileira, "é preciso estar em ação. É como um atleta que fica parado o ano todo e quer competir na São Silvestre: vai perder. Se o cantor canta demais, cansa a voz. Se canta de menos, enferruja". "Parado, o cantor enferruja tanto vocal como artisticamente, não tem chance de experimentar sua voz, não sabe como ela fica no palco, com uma orquestra, o que provoca insegurança", diz o barítono Sandro Christopher. Estrangeiros - Histórias e experiências pessoais de artistas indicam, no entanto, que, por mais óbvia que possa parecer a afirmação de que o cantor deve cantar, a situação parece não funcionar bem assim. "Não há regularidade nas temporadas, alternamos anos em que cantamos em mais de uma oportunidade e outros em que ficamos parados. Não dá para pensar em uma carreira a longo prazo, saber ao certo se vai ser possível viver disso em alguns anos", diz a soprano Rosana Lamosa. Outro problema apontado diz respeito à preferência de nomes do exterior em detrimento de cantores brasileiros. "Elencos doppioni (reservas, que muitas vezes ganham uma ou duas récitas durante a temporada de um espetáculo) compostos por brasileiros muitas vezes não têm direito nem mesmo a um ensaio com orquestra antes das apresentações, além disso é comum que seus cachês sejam menores do que o de cantores estrangeiros. É preciso acabar com a mentalidade de que nossos cantores não atraem público", diz Casoy. Céline Imbert chama a atenção para o fato de que a presença de cantores estrangeiros nas temporadas brasileiras precisa ser compreendida dentro de uma perspectiva histórica. "Nas décadas de 50 e 60, por exemplo, as programações eram montadas por agentes e empresários italianos, não havia aqui grande tradição ou número de talentos, apesar de haver gente muito boa. Hoje, porém, a situação mudou, a ópera está mais estabelecida no Brasil. O que precisa haver é uma mudança no modo de pensar de alguns produtores, que desprezam a produção artística nacional, têm a mente colonizada, possuem interesses que muitas vezes pouco tem a ver com a produção cultural brasileira." Mas, qual seria a saída? Fechar as portas a cantores de fora? Segundo o maestro Luis Fernando Malheiro, diretor musical convidado do Municipal do Rio e encarregado da parte artística do Festival Amazonas de Ópera, o caminho é o equilíbrio. "Os programadores têm que saber quem são os cantores brasileiros disponíveis para poder programar óperas nas quais eles possam render melhor e não acabar dependendo de elencos vindos de fora. Só assim se obtém um bom equilíbrio." O que exige, também, planejamento. "Não se deve excluir a importação de talentos, mas é preciso saber combinar cantores nacionais e de fora de modo correto. E para isso é preciso planejamento. Na última hora, não é comum conseguir trazer bons cantores de fora, que às vésperas das apresentações, não conseguem se integrar com o elenco nacional. É por isso que, muitas vezes, mesmo que não tenham a mesma bagagem, elencos doppioni se saem melhor que os de estrangeiros", aponta Sérgio Casoy. Este pouco espaço, associado às pequenas temporadas dos teatros brasileiros (no ano passado, três produções no Municipal de São Paulo e quatro no carioca, os dois principais do País) resulta, segundo a soprano Adélia Issa, em um número pequeno de oportunidades, o que faz com que muitas vezes cantores aproveitem oportunidades nem sempre ideais. Ela se refere a interpretação de papéis cedo demais ou inadequados para as suas vozes. E isso pode ter conseqüências graves a longo prazo na carreira. "Até os 35 anos, todo o aparelho vocal, desde o diafragma às cordas vocais, enfim, toda a musculatura está em formação. Em uma ópera o empenho vocal é muito grande e os jovens não tem resistência suficiente, falta firmeza muscular, o que pode prejudicar as cordas vocais, por exemplo. O cantor precisa tomar cuidados quanto a isso." As poucas oportunidades também esbarram em questões financeiras. E, segundo Casoy, isso acaba fazendo com que muitos cantores tenham que procurar formas alternativas de renda, que podem só machucar ainda mais a voz, como cantar em casamentos. Outra possibilidade é passar a fazer parte de coros. Mas, também neste caso, os riscos podem ser grandes. "O coro pode trazer danos à voz solista pois o cantor é forçado a cantar diversos repertórios, peças de estilos e períodos diferentes, que exigem esforços vocais distintos. Em seis ou sete anos, o coro pode encerrar com a chance do artista de se tornar um solista." Casoy ressalta, porém, que o coro pode também ser a solução para a programação de teatros, no que é acompanhado por alguns artistas. "Com membros do próprio coro, um teatro pode montar uma programação estável de ópera, com produções que durem anos, dando oportunidades a cantores, criando uma tradição dos corpos estáveis e atraindo sempre novo público." É o que se chama de teatro de repertório: ao mesmo tempo que produz novas óperas, recupera antigas montagens. Futuro - Mas nem tudo são lágrimas e alguns artistas acenam para uma situação que, lentamente, se encontra em mutação. Outros são mais enfáticos. "Há hoje uma grande geração de cantores interessantes e creio que já é possível se falar de ´carreira de cantor´", diz Malheiro, com quem concorda Sandro Christopher. "Eventos como o Festival de Manaus são oportunidade para o público conhecer os artistas brasileiros, apesar de ainda achar necessário para o cantor sair do País, passar um tempo fora, entrar em contato com correntes e escolas diferentes", aponta o barítono. Céline Imbert é otimista. "Há gente nova se interessando por essa arte que, tímida, já está estabelecida no País. Temos teatros, orquestras, coros, diretores, figurinistas, maestros, cantores. É preciso apenas que haja gente disposta a apostar nesse potencial e dar a primeira chance." Também na ópera, o Brasil parece ser o país do futuro.

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