Camargo Guarnieri recuperado em vida e obra

Longos e aprofundados estudos sobre a trajetória, as idéias e as realizações do artista, mais o relançamento de CDs, recuperam a figura do compositor, discípulo de Mário de Andrade, e, como este, partidário do nacionalismo

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Por Agencia Estado
Atualização:

Marginalizado e isolado no final da vida, Guarnieri certamente ficaria surpreso com o verdadeiro ?revival? que se promove em torno de seu nome menos de dez anos depois de sua morte. Um calhamaço de quase 700 páginas intitulado O Tempo e a Música, volume coletivo organizado por Flávio Silva para a Funarte/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, chegou recentemente às livrarias. A Edusp promete para o segundo semestre outro livro imponente e minucioso de quase 500 páginas, Carmargo Guarnieri: Expressões de uma Vida, assinado pela musicóloga norte-americana Marion Verhaalen (o livro, já em provas, é resultado de tese universitária de 1989, mas permanece inédito nos Estados Unidos; sairá aqui com tradução de Vera Camargo Guarnieri). A Master Class, selo independente distribuído pela MCD que se vem se destacando no paciente trabalho de resgate da música brasileira gravada, está em fase final de produção de uma caixa com dez CDs contendo uma suma da obra de Guarnieri em registros históricos, vários deles com o próprio compositor na regência ou no piano. Sem contar a tese de doutorado Camargo Guarnieri: A História Recontada, que a pianista Maria José Carrasqueira defenderá em agosto no Departamento de Música da USP, em que esmiúça o último grande concerto de Guarnieri como pianista, realizado no Teatro Paramount em 15 de outubro de 1965, quando ele acompanhou ao piano o violoncelista Alberto Corazza, o flautista João Dias Carrasqueira e a filha Tânia numa sonata para violino. ?Na tese recupero a sua imagem como pianista?, afirma Maria José. Justiça ? Parece muito, mas, na realidade, apenas se está fazendo justiça à sua verdadeira estatura criativa. Ninguém nega que ele viveu marginalizado seus últimos 30 anos de vida. Em dois níveis. Esteticamente, porque seu ideário nacionalista parecia ultrapassado e gasto aos olhos ?pós-moderninhos?. Nos anos 60/70 a ordem era ser cerebral, aleatório, eletrônico e outros ismos importados imagináveis. A conseqüência desse isolamento foi muito forte, sobretudo numa personalidade como a dele, um homem que jamais batalhou pela execução, publicação e/ou gravação de suas obras, ao contrário dos espertos que vendem até a mãe para conquistar espaços. Para quem, como Guarnieri, não nasceu em berço de ouro, foram inevitáveis as dificuldades financeiras pelas quais passou nas décadas finais de sua vida. A doença do filho, a venda do seu retrato pintado por Portinari para garantir a sobrevivência da família e tratamentos médicos, as pontes rodoviárias que fazia entre São Paulo e Uberlândia, São Paulo e Goiânia, para equilibrar as finanças; o mundinho da música erudita sabia disso tudo. Quando lhe ofereceram a direção da Orquestra da USP ? bendita idéia --, ainda houve movimentos brutais para deslocá-lo do posto. Bonachão, mas introvertido, dono de uma risada bem interiorana, Camargo Guarnieri trabalhou como nunca nesse período final, desperdiçando energias que, fosse outra sua situação econômica, seriam direcionadas só para a criação. Ele adoraria, é claro, gastar todas as horas de seus dias mergulhado na barafunda de partituras, livros e material de trabalho com os quais convivia em seu dia-a-dia no estúdio da Rua Pamplona. Mas, infelizmente, ele pouco freqüentou seu bunker de criação. Um livro monumental ? O Tempo e a Música, organizado por Flávio Silva, resgata, portanto, a real figura do compositor e traz como atrativo adicional a publicação da correspondência inédita de Guarnieri com seu grande mestre intelectual, Mário de Andrade. Mas ele não vale só por isso. Vale porque pela primeira vez se sistematiza num só volume o essencial sobre Guarnieri. E em escala e com qualidade profissionais, artigos escassos por aqui. O livro é de fato monumental e precioso pela edição realmente cuidadosa do pesquisador que tomou a si a tarefa ingrata de concluir a edição do volume, esboçada por Vasco Mariz nos anos 80. Flávio fez um belíssimo trabalho, dividido em seis partes. Na primeira, intitulada O Homem, um perfil caleidoscópico da figura humana do compositor, incluindo, entre outros, um artigo de Caldeira Filho, antigo crítico do Estado e testemunha ocular de toda a evolução de Guarnieri; e, sobretudo, o levantamento completo da famosa celeuma criada pela Carta Aberta de Guarnieri, de 1950, em que ele vociferava contra Koellreutter e a música dodecafônica, batalhando pelo nacionalismo musical. A segunda parte é a da correspondência com Mário de Andrade, a terceira uma excelente iconografia e a quarta parte reúne artigos de vários pesquisadores, cada um sobre um gênero. Assim, Osvaldo Lacerda, ex-aluno de Guarnieri, escreve sobre a música coral, Belkiss Carneiro de Mendonça sobre a obra pianística, Ricardo Tacuchian sobre as sinfonias e Lutero Rodrigues sobre os concertos (Laís escreve, naturalmente, sobre os concertos para piano). As duas partes finais são fundamentais. A primeira delas é o primeiro catálogo sistemático e definitivo da obra; e a segunda é algo que deveria ser obrigatório para todo livro de referência e é muito raramente praticado no Brasil. As cronologias da vida e das obras; e os índices alfabético das obras, de textos poéticos musicados por Guarnieri, as edições de partituras, os conjuntos musicais, as instituições, eventos, de periódicos e onomástico. Além da bibliografia. Essas são ferramentas indispensáveis para guiar não só leituras com enfoques específicos, mas também e sobretudo futuras pesquisas sobre a vida e obra de Guarnieri. Comunicação por sinais ? Apesar de ter sido, nos anos 40, um dos escolhidos por Aaron Copland, emissário musical do governo americano, para ser garoto-propaganda, ao lado de Carmen Miranda e Zé Carioca, da política de boa vizinhança com a América Latina, e por isso ter estreado obras nos Estados Unidos e ser bem divulgado por lá, a verdade é que Guarnieri jamais falou inglês. Por isso, quando a musicóloga americana Marion Verhaalen aportou em São Paulo no fim dos anos 60, disposta a fazer uma tese sobre sua obra para piano, a comunicação entre ambos foi praticamente por sinais. A barreira da língua, entretanto, não foi suficiente para desanimá-la. Pelo contrário, apaixonada pela produção do compositor, ampliou o escopo da obra, até transfomá-la num exaustivo guia de análise, obra a obra. A tarefa, que contou com a decisiva colaboração de Guarnieri, terminou em 1989, mas o livro permanecia inédito até a proposta de Vera Camargo Guarnieri à Edusp de traduzi-la e editá-la em português. Uma leitura das provas atesta que o livro é de fato excepcional. Das quase 500 páginas, dedica 80 a um perfil biográfico e 420 a análises obra a obra. É mais minucioso do que O Tempo e a Música, que dedica ensaios mais panorâmicos a cargo de autores diversos sobre cada gênero musical abordado por Guarnieri. O resgate em disco ? A coleção de dez CDs de Camargo Guarnieri que a Master Class lança em setembro é fundamental, porque recupera gravações inacessíveis, coloca ao alcance do público pela primeira vez vários registros inéditos e tem no próprio compositor um intérprete privilegiado. Entre os inéditos, há gravações notáveis, como a das Variações sobre um Tema Nordestino, feita em 1969 com a Orquestra Sinfônica de Rochester regida por Howard Hanson com Yara Bernette ao piano (o CD também contém o Concerto n.º 2 para Piano e Orquestra com Eudóxia de Barros/Guarnieri e o Concertino para Piano e Orquestra com Laís/Simon Blech). Ou então a integral recentíssima, de 1999, das peças para violoncelo e piano com Antonio Lauro Del Claro e Laís de Souza Brasil (uma das intérpretes preferidas de Guarnieri). Pela ordem, os dois primeiros CDs recolocam em circulação a ótima integral dos Ponteios para piano com Isabel Mourão (registro de 1966). O terceiro CD traz uma integral surpreendente, a dos 20 estudos, com o pianista americano Frederick Moyer, realizada em 1995. Raridade ? Um precioso achado é a remasterização de uma gravação ao vivo de 1972, no Teatro Municipal de São Paulo, da Missa Diligite com o próprio Guarnieri na regência, orquestra e coro do teatro e o celebrado Angelo Camin como solista de órgão. Completa o CD uma raridade: Guarnieri acompanha, ao piano, a soprano Edmar Ferretti em 15 canções (ele a considerava a intérprete ideal de sua música). Gilberto Tinetti, um de nossos notáveis cameristas que infelizmente grava pouco sozinho, percorre as quatro sonatinas num CD dividido com a Sonata para Piano em leitura de Laís e Três Danças Brasileiras com Eudóxia. O oitavo CD traz a trilha sonora que Guarnieri compôs para Rebelião em Vila Rica e a Sinfonia no. 4 com o próprio na regência. O nono CD traz os choros e o décimo as obras para flauta. Claro, sente-se falta das sinfonias (que por sinal a Osesp está começando a gravar); e das sonatas para violino e piano. Afinal, a segunda delas foi o pivô da primeira briga estética de Guarnieri com seu guru Mário de Andrade em 1933. Mas as três foram recentemente gravadas pela filha do compositor, Tânia, e a incansável guarnieriana Laís de Souza Brasil.

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