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Caixa de Chico Buarque chega às lojas nesta quarta

Por Agencia Estado
Atualização:

A capa de Chico Buarque de Hollanda, elepê lançado em 1966, pela gravadora RGE (que fechou as portas no ano passado - era a última nacional no ranking das grandes), trazia o compositor numa fotomontagem de acabamento duvidoso: Chico rindo, à esquerda de quem pega o disco, e sério, quase triste, à direita. Verdade que as capas de disco brasileiras começaram a ser mais sofisticadas nos anos 70, mas aquela era quase tosca, e redundante. Queria dizer o óbvio - Chico era capaz da leve e alegre A Banda ou de queixas de amor como Sonho de um Carnaval ou de sambas desiludidos como Amanhã Ninguém Sabe. Era também capaz de sofisticar a chamada música de protesto - a crônica de Pedro Pedreiro é digna antecessora da obra-prima Construção, que surgiria em 1971. Construção é o nome da caixa que a Universal está lançando: contém os 21 primeiros discos de Chico e um 22.º volume com gravações extraídas de discos alheios de que ele participou, canções que saíram apenas em compactos, registros ao vivo, etc. Chico Buarque de Hollanda foi o primeiro elepê do compositor e, se a capa é naïf, a música é seu oposto. No ano anterior, Chico Buarque havia ganho um festival da canção com A Banda. Tornou-se, de uma hora para outra, um dos autores mais populares - e queridos - do País. O crítico Tárik de Souza, no texto (em português, inglês e francês) do libreto que acompanha a caixa, observa que o repertório inaugural era ortodoxo e inesperado para um compositor de 22 anos, um repertório de marchinhas, sambas, choros, modinhas e que remetia à tradição de Noel Rosa (Chico foi comparado a ele; negou, desde sempre, que fosse o compositor de Vila Isabel sua principal referência, preferindo Wilson Batista). Essa ortodoxia, se existiu, era menos na forma poética do que na musical. Os anos 60 eram anos de transformação social e a década em que a indústria cultural instalou-se definitivamente no mundo do disco, depois do surgimento dos Beatles. Por excelência, a indústria cultural quer novidade a cada momento. A música de Chico não era, à olhada descuidada, música "nova". Mas Chico trouxe de novo à tona um tipo de samba (e moda, e choro, e marcha-ranho) urbano carioca (ainda que tenha passado a adolescência em São Paulo) que não tinha mais representantes. Era o samba de Noel, sim, crônica da cidade (de cidades, eventualmente o Rio de Janeiro porque a forma musical era carioca) e de seus personagens - a bossa nova não queria saber disso e os autores voltados para a canção de protesto tinham outras prioridades. Em todo caso, a forma dita ortodoxa facilitou que Chico fosse apreciado pelos mais velhos, assim como os olhos claros encantavam as mocinhas de todas as idades. No entanto, a mesma propalada ortodoxia fez com que se torcessem narizes de músicos tecnicamente mais bem preparados do que ele: Chico seria um bom poeta, um músico menor. A tolice ainda encontra eco em alguns redutos do mundo musical. Inovação sutil - Em 1967, seria lançado novo elepê - Chico Buarque de Hollanda, Volume 2. A impressão digital do compositor vinha mais nítida em canções como Com Açúcar, Com Afeto, Quem te Viu, Quem te Vê, Morena dos Olhos d´Água, Noite dos Mascarados. O que o disco provava era que Chico promovia uma inovação sutil no formato tradicional da música urbana carioca - estava promovendo um fundamental enriquecimento das linguagens poética, melódica e harmônica. A simplicidade era, cada vez mais, só aparente. Chico Buarque de Hollanda, Volume 3, de 1968, traz importantes novidades: o início da parceria com Tom Jobim (Retrato em Branco e Preto); o arrepio político de Roda Viva (com a participação inestimável e constante, a partir dali, do MPB-4; o arranjo de Magro Waghabi para a canção é talvez o melhor arranjo vocal já escrito na música brasileira); a postura contestatória mais definida - o que antes era metafórico, torna-se explícito na melodia do Funeral de um Lavrador, sobre poema de João Cabral de Melo Neto. Chico está, também, mais triste: ouvem-se no disco O Velho, Até Pensei, Ela Desatinou, Desencontro. A experiência de trabalhar sobre poesia alheia prossegue no disco de 1970, Chico Buarque de Hollanda, n.º 4 (por algum motivo, trocou-se "volume" por número; Chico havia mudado de gravadora, da RGE para então Philips, hoje Universal), com o tema de Os Inconfidentes, versos de Cecília Meireles no Romanceiro da Inconfidência. Tem início, aqui, a parceria com Vinicius de Moraes (Gente Humilde, melodia de Garoto), prossegue o trabalho com Jobim (Pois É); a metáfora fica mais áspera (Rosa dos Ventos) mas o lirismo não abandona o cantor: a modinha Não Fala de Maria é de perene maravilha. "Dorme minha pequena/ Não vale a pena despertar/ Eu vou sair por aí afora/ Atrás da aurora mais serena" - são esses os quatro únicos versos de Acalanto para Helena, a música que fecha o repertório de Construção, de 1971. Foi impossível que esses versos, naquele momento, não fossem lidos como dito político. Chico nem sempre aceita as interpretações. Diz que não tinha a intenção de retratar o País no quebra-cabeça de Construção. Veio-lhe primeiro o pulso do violão, depois a letra, que terminava na primeira estrofe. Mais tarde, ele se deu conta de que poderia trocar a ordem das proparoxítonas. Deu na obra-prima que deu, não a única do disco, que tem também Olha Maria ("Olha Maria / eu bem te queria / fazer uma presa / da minha poesia" - talvez a melhor parceria com Jobim), Cordão, Desalento, Cotidiano, a impressionante - e, sim, desaforadamente política - Deus lhe Pague, o recado do Samba de Orly (com Toquinho e Vinicius) a clássica Valsinha. Um disco rigorosamente perfeito. Só nesse disco aparece o nome de um diretor musical - Magro Waghabi, do MPB-4. Uma falha do elepê original vai repetida no CD: os arranjos são de Waghabi, todos, menos o de Construção, que foi escrito por Rogério Duprat. A informação não consta da reedição. Velhos carnavais - De 1972 é Quando o Carnaval Chegar, trilha para o filme de Cacá Diegues. São 14 faixas, sete de Chico, as outras, clássicos dos velhos carnavais. Chico divide os vocais com Maria Bethânia e Nara Leão - elas repetem, no disco e no filme, o dueto de Carmem e Aurora Miranda em Cantores do Rádio, de Lamartine Babo, Braguinha e Alberto Ribeiro. Chico escreveu um rock, ou melhor, um baião com introdução de rock, batizado Baioque; inverteu os ditos populares em Bom Conselho ("Ouça um bom conselho/ Que eu lhe dou de graça/ É inútil dormir que a dor não passa"), pesou a mão no Partido Alto (que teve palavras censuradas), escreveu uma de suas mais bonitas e complexas canções, Soneto, uma peça que poderia ter assinatura de Villa-Lobos. Ainda há quem não tenha percebido o imenso compositor já maduro. Do mesmo ano é Caetano e Chico - Juntos e ao Vivo, com a antológica intepretação da dupla para Cotidiano (de Chico) e Você não Entende Nada (de Caetano). Um disco que serviu para dirimir os boatos segundo os quais os dois não se davam. A censura apertou. Calabar, de 1973, não pôde ostentar o título da peça (co-escrita com Ruy Guerra) - saiu como Chico Canta. A capa também foi proibida - saiu branca. Curiosamente, o livro com o texto da peça tinha capa igual à que estaria no disco. Circulou normalmente. As faixas foram mutiladas. O amor lésbico de Bárbara perdeu palavras. O sexo aparece intensamente em Cala a Boca, Bárbara, Tatuagem, Tira as Mãos de Mim. Entre a crítica irônica do Fado Tropical e a ameaça explícita de Fortaleza, mais um disco antológico. Em 1974, as músicas de Chico eram proibidas pelo simples fato de serem de Chico. Ele gravou Sinal Fechado, com músicas alheias, a começar pelo desencontro desesperado de Paulinho da Viola, na faixa título, seguindo por Me Deixe Mudo, de Walter Franco. Mas o compositor arranjou maneira de driblar a tesoura. Inventou um compositor - Julinho da Adelaide -, que assina algumas faixas do disco. Julinho da Adelaide era ele mesmo. Mas tinha biografia, referências, uma rica hístória. Mário Prata fez uma "entrevista" engraçadíssima com o autor de Acorda Amor (aquela do "chame o ladrão, chame o ladrão!"). Doía. Ria-se. Segue-se o registro de show (1975) Chico Buarque e Maria Bethânia ao Vivo, com algumas músicas novas (Sem Açúcar e a parceria com Caetano Veloso Vai Levando). O disco seguinte, de 1976, Meus Caros Amigos, estabelece a parceria com Francis Hime (A Noiva da Cidade, Passaredo, Meu Caro Amigo) e há vários temas para cinema e teatro (O Que Será, Mulheres de Atenas - com Augusto Boal -, Vai Trabalhar, Vagabundo, etc.). É, ainda, o disco que tem Olhos nos Olhos. Em 1977, Chico traduziu e adaptou a fábula (política, para crianças) Os Saltimbancos, de Luiz Enriquez e Sérgio Bardotti, inspirada em história dos Irmãs Grimm. As pesadas Pivete (com Francis Hime) e Cálice e o samba leve Feijoada Completa são estrelas de Chico Buarque (1978), que traz ainda Apesar de Você (supostamente feita para o general-presidente Ernesto Geisel). A monumental Ópera do Malandro, trilha da peça, adaptação de Brecht para o corrupto universo do bas-fond carioca, uma metáfora de Brasil, saiu no ano seguinte. Nova década - Vida, de 1980, tem Eu te Amo (com Jobim), Morena de Angola> (feita para Clara Nunes), De Todas as Maneiras (exercício formal de ourives), a engraçada Deixa a Menina, a cinematográfica Bye Bye, Brasil (com Roberto Menescal). Mas o primeiro grande disco da nova década viria no ano seguinte: Almanaque (que tem, de quebra, uma das melhores capas - de Elifas Andreato - da discografia brasileira). As Vitrines, Ela É Dançarina, a faixa-título, Angélica (para Zuzu Angel, parceria com Miltinho, do MPB-4), Tanto Amar, Amor Barato - uma coleção de pérolas. Chico havia mudado de gravadora. Escreveu uma canção reclamando do tratamento que recebia, em A Voz do Dono e o Dono da Voz. Mas a nova gravadora foi comprada pela antiga, quando o disco saía. Essa é uma ironia involuntária, de fato. Chico associou-se aos Trapalhões para a trilha de Os Saltimbancos Trapalhões (também de 1981) e lançou o primeiro trabalho En Español (1982), versões, sem música nova. O samba Pelas Tabelas, do disco Chico Buarque (1984), ganhou sentido político que o autor jura não ter. Foi adotada pela campanha das diretas já. Chico jura que é uma história de amor, e só. O disco traz a preciosa canção Suburbano Coração e a impressionante Brejo da Cruz. Os dois últimos volumes formais são Malandro (1985) e Ópera do Malandro (1986), músicas novas para o filme de Ruy Guerra e novas interpretações para números originais da peça. Por fim, o disco-brinde tem João e Maria (parceria com Sivuca, dueto com Nara Leão), A Rosa (dueto com Djavan), A Violeira (parceria com Tom, interpretação do Quarteto em Cy) e outros números de acesso difícil. A gravadora propõe para a caixa, que começa a ser vendida nesta quarta-feira, o preço de R$ 400. Informa que futuramente - não diz quando - os volumes estarão disponíveis, isoladamente.

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