Caetano quer fazer CD experimental

O músico fez testes com vozes e percussão, algumas vezes até sem canção, no show realizado há algumas semanas em Salvador, mostrando que a experimentação continua movendo seu trabalho

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Por Agencia Estado
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A experimentação continua movendo o trabalho de Caetano Veloso: no show que realizou há algumas semanas em Salvador, durante o Festival de Verão, o músico aprovou os testes que fez com vozes e percussão, algumas vezes até sem canção. "Adorei o resultado, a reação da platéia, o grau de animação que dá, a gama de possibilidades", disse, em entrevista , na cidade onde nasceu, a 72 km de Salvador. Caetano, na verdade, pretendia gravar a experiência e lançá-la em seu recente CD, Noites do Norte. A atração irresistível do texto do abolicionista Joaquim Nabuco, porém, adiou seus planos. O músico encantou-se com as teses sobre a abrangência da escravidão na vida brasileira a ponto de musicar o pequeno texto que dá título ao CD. Orgulhoso do trabalho, Caetano defende-o diante das críticas, lembrando ainda os sopros renovadores da música brasileira e a influência recebida do cineasta Gláuber Rocha para desenvolver o hábito de ler jornais. Agência Estado - No Festival de Verão de Salvador, você tocou com apenas quatro percussionistas, realizando seu desejo de fazer experimentações com o modo de gravar a voz com percussão, algo que você planejava para o CD Noites do Norte. Como foi essa experiência? Caetano Veloso - Toquei com os mesmos percussionistas que fizeram o show Livro comigo e gravaram Noites do Norte. Foi a primeira vez que me apresentei em público dessa maneira e adorei o resultado do clima provocado pela percussão com o canto e o violão, além da reação da platéia, o grau de animação que dá, a gama de possibilidades. Com a percussão, nem sempre é possível identificar a música, o que acaba ocorrendo quando entram os acordes do violão. Foi assim? É isso mesmo. Há um contraste entre a percussão e canção e, às vezes, uma reiteração. Você pretende trabalhar mais nesse tipo de experiência? O que apresentei em Salvador foi específico para o show. Para o disco, eu tinha vontade de fazer algo ainda mais experimental, de vozes e percussão até mesmo sem canção. Terminou ficando algo disso, em algumas pontas de canção, no meio, em algumas entradas e no gosto sonoro geral. Mas as canções terminaram predominando. É que eu sou escravo das canções (risos), desde criança. E a influência decisiva foram os textos de Joaquim Nabuco, certo? Foram. Aqueles textos do Nabuco terminaram me levando a compor uma peça com começo, meio e fim. E, embora não seja uma canção convencional, pois é um texto em prosa, sem repetições, eu me impus o desafio de manter a clareza do texto. Acho que fui bem sucedido. Apesar de o disco ser muito bom sob meu ponto de vista, a faixa Noites do Norte é a menos satisfatória para mim. Por quê? Porque, embora a composição seja bem sucedida e tenha essa vitória que foi manter a clareza do texto, acredito que, na combinação da orquestração com as percussões, todas as outras faixas do disco estão melhores que Noites do Norte. Mas, vou lhe dizer, mesmo que eu não tivesse conseguido nem colocar música, tivesse simplesmente reproduzido o texto em algum lugar para chamar atenção para a importância da obra do Joaquim Nabuco, já me teria valido a pena. Inicialmente, eu não pensava em musicar esse texto. O que você pretendia então? Apenas divulgar, seja no release do lançamento ou reproduzi-lo no libreto do CD. Também faria algumas canções evocando a data do 13 de maio, a Princesa Isabel. Eu queria compartilhar a inquietação que o texto me provocou. Mas algumas pessoas acreditaram que o disco ficou desencaminhado, pois começa com um tema e depois o abandona. Mas não é assim. Eu queria justamente colocar o texto do Nabuco para que todos os sons aparecessem harmônicos com (cita o texto) "o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte". Eu quase gravei Você não Gosta de Mim, da qual gosto mais, no lugar de Sou Seu Sabiá. Mas achei que esta participa mais desse ambiente do "suspiro indefinível". Todo o lirismo e intimismo que aparecem no disco estão mais comentados pelo texto do Nabuco que as óbvias canções sobre raça, escravidão e abolição. Como você avaliou a recepção à sua decisão de subverter o esquema tradicional de lançamento de discos, ao escolher a Internet para divulgar Noites do Norte? Eu não quis lançar nenhuma novidade, mas dar um ritmo diferente ao lançamento do disco. Eu já estava enjoado da forma como discos e livros são lançados nos cadernos de cultura dos jornais brasileiros. Eu queria apenas contribuir. Li um artigo do Sérgio Augusto, na revista Bravo, e fiquei contente de encontrar pontos semelhantes aos meus, sobre essa forma de divulgação dos lançamentos da "indústria cultural", para utilizar essa expressão de Adorno de que jornalistas pretensiosos gostam tanto (risos). Mas o resultado lhe agradou? Sim, mas eu não esperava nada espetacular, que mudasse parte das coisas. Apenas deu uma mexidinha no ambiente. O disco era tão importante para mim que, quando terminei o trabalho, eu já tinha disparado essa intenção, falando com pessoas próximas a mim. Quase fiquei arrependido de mexer com isso, pois temia desviar a atenção do disco, que é tão denso para mim. Eu devia fingir que não estava lançando e fazer como todos músicos fazem seus lançamentos, para que a diferença dele fosse ressaltada e não criar uma expectativa diferente, como se fosse um disco diferente. Mas, no fim das contas, não achei que o resultado foi negativo. Um dos pontos polêmicos foi seu questionamento sobre a capacidade dos críticos. Você chega a dizer que "o sujeito que critica não sabe redigir bem". Por quê? Quando tratam do próprio comercialismo do qual fazem parte, que são os jornais, essas pessoas não parecem ter nenhuma gota desse furor crítico que despejam contra o comercialismo musical. Era isso o que me interessava ressaltar. Esses críticos, às vezes, são muito agressivos e rejeitam o comercialismo dos artistas de uma maneira arrogante e até com um elitismo primário, numa espécie de puritanismo. Uma atitude contrastante com o comercialismo que predomina na imprensa e que chega a ser quase caricatural. Você acompanha, então, detalhadamente a produção dos principais jornais? Não me julgo muito bom para criticar a imprensa, pois fui um menino que não lia jornal, continuei assim como jovem, e só passei a ler com 27, 28, talvez 30 anos, ou seja já era um burro velho. Eu tinha horror a jornal, não comprava, não lia, não assinava. Só comecei a ler quando o presidente do Brasil já era Ernesto Geisel. Foi o Gláuber Rocha quem me despertou para esse hábito. Como foi? Devo a ele minhas duas tentativas de ler jornal. A primeira, quando adolescente ainda, eu comprava aos domingos o Diário de Notícias, de Salvador, para ler o suplemento literário, editado pelo Gláuber. Aquilo me interessava muito, mas eu não lia nada mais do jornal. A segunda foi quando o Ernesto Geisel estava para assumir a presidência e foi elogiado pelo Gláuber. Foi uma atitude blasfema, afinal, era um diretor de cinema de esquerda que falava bem de um presidente da ditadura militar. O engraçado é que Gláuber o elogiou com termos individuais e hilariantes, algo como "ele é protestante como eu, portanto trará idéias de modernidade!" Achei aquilo tão genial, estimulante, que comecei a ler os jornais e nunca mais parei. Em uma entrevista à revista Almanaque Brasil, Tom Zé faz uma crítica aos novos músicos que, segundo ele, só querem repetir. O que você pensa disso? É muito difícil dizer, pois isso me causa confusão na cabeça. Para pessoas como Tom Zé, eu, Gil, Chico, Milton, que surgimos a partir da metade da década de 60, o mais tentador é pensar que as gerações que vieram depois afrouxaram muita coisa ou se deixaram levar por coisas que não achamos excitantes. Para mim, o sucesso internacional da música pop, que se tornou uma imensa força de mercado, veio como uma forma poderosa de atuar e expressar sobre a realidade, algo além do mero entretenimento. Assim, parece que quem veio depois fazia um trabalho a partir de um planejamento com risco zero. Converso sobre isso com o Gil desde a metade dos anos 70, lembrando nomes como David Bowie, Prince, Michael Jackson, Madonna, Sting. Tudo é muito pré-amparado. Lembro de uma apresentação dos Beatles, em que o Paul McCartney carregou um amplificador em pleno show! E hoje, pessoas que não têm nem um terço do talento dele já vêm com tudo preparado, um aparato digno de um imperador de Roma. Mas há manifestações musicais que me interessam. Quais? Axé Music, por exemplo. Vi um show modesto da Banda Reflexo, antes de se tornar unanimidade nacional, que me deixou alucinado. Que energia, vitalidade, regeneração das coisas! Ou ainda um compositor que vi só uma vez, em Porto Alegre, muito inventivo (Jupiter Apple). Ele tem um repertório de frases sonoras da Jovem Guarda, repassadas por distorções, ruídos. É um tratamento ultra-arrasador, anarquista. Essas coisas me excitam. São vitais, mesmo algumas sendo de áreas totalmente comerciais. Fale um pouco da sua nova homenagem ao cinema italiano, agora a Antonioni. Eu cresci vendo o neo-realismo, aqui em Santo Amaro, e o Antonioni era um dos meus preferidos. E, claro, Fellini: A Estrada da Vida foi o filme que mais me impressionou, quando eu tinha 15 anos, e Os Boas Vidas provocou uma grande surpresa na cidade, pois há um rapaz que era açougueiro e hoje é trombonista na banda da cidade que, depois de ver o filme, saiu gritando: "Essa é a história da nossa vida!" O que você está lendo agora? Terminei há pouco Meu Casaco de General, de Luis Eduardo Soares, ex-secretário de Segurança do Rio. Estou lendo Política, de Aristóteles, um texto lindo, com um estilo límpido, e uma biografia de Elvis Presley. Três coisas bem diferentes, não? Acho que me encaixo bem na definição que o José Guilherme Merquior cunhou para mim: sub-intelectual de miolo mole. Algo que faço questão de honrar (risos).

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