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Bossa nova cai no balaio da world music

Quando João, Voz e Violão foi lançado João inventou um estilo mudou a música do mundo. Continua fazendo bossa nova. Não faz moda, faz música. Injusto que ele tenha sido premiado na subcategoria - um balaio de gatos - chamada world music

Por Agencia Estado
Atualização:

Quando foi lançado, João, Voz e Violão recebeu um punhado de críticas negativas. A maioria delas falava mal: um disco preguiçoso (pouco mais de 30 minutos) um disco repetitivo (até Chega de Saudade ele regravou), um disco sem novidades. Difícil é saber que tipo de "novidades" se pode esperar de João Gilberto. Ele é o inventor de um estilo de tocar violão e cantar ao qual se deu o nome de bossa nova. Esse estilo mudou a música do mundo. João continua fazendo bossa nova. Não faz moda, faz música. A sua música, de direito e de fato. Pois bem, João, Voz e Violão ganhou o Grammy. É injusto. Não que a indústria fonográfica não deva a João Gilberto Prado Pereira de Oliveira todos os prêmios existentes. Injusto que ele tenha sido premiado na subcategoria - um balaio de gatos - chamada world music. World music é o nome daquilo que a indústria multinacional - o Grammy é um prêmio da grande indústria do disco - não sabe classificar. A subcategoria é fruto direto do rigoroso imediatismo com que se sabe das notícias (e se pode ouvir músicas) de toda parte - da televisão, dos festivais internacionais de música, da Internet. É preciso acariciar o ego das indústrias emergentes. O Brasil está entre os dez maiores mercados de disco. Chegou ao terceiro lugar, no ranking internacional. Nos últimos anos, declinou. Nos últimos anos, os brasileiros foram premiados - sempre na categoria world music: Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil. Tudo bem, a carreira deles - é uma constatação, antes de ser crítica - lança carinhos para os modismos da grande indústria. Não é o caso de João Gilberto. João, Voz e Violão tem Antônio Almeida e Roberto Riberti (Não Vou para Casa), Bororó (Da Cor do Pecado), Herivelto Martins e Marino Pinto (Segredo). Tem Tom Jobim dos primeiros tempos da bossa - Chega de Saudade, com Vinícus de Morais, Desafinado, com Nilton Mendonça, Você Vai Ver, só dele. Tem bossa de Caetano (Coração Vagabundo, dos anos 60, e Desde Que o Samba É Samba, dos 90), bossa de Gilberto Gil (Eu Vim da Bahia, dos anos 60). Abre uma concessão internacional: Eclipse, do cubano Alberto Lecuona. Mas com levada de bossa. E João, que morou anos no México, sempre gravou boleros em ritmo de bossa. Em 1964, o disco Getz/Gilberto embolsou seis Grammys, incluindo o de disco do ano - de jazz. A diferença é que havia, ali, a presença do saxofonista de jazz (de resto, um músico menor, cuja grande importância foi a de haver empunhado a bandeira da bossa) Stan Getz. Ruy Castro lembra, em Chega de Saudade, que João - ele não fala inglês - pedia a Tom Jobim: "Tom, diga a esse gringo que ele é um burro". Tom dava outra versão: "Stan, o João está dizendo que o sonho dele sempre foi gravar com você." Getz/Gilberto foi gravado em 1961, mas lançado só em 1964, depois de uma mexidas do produtor Creed Taylor, que queria torná-lo mais comercial do que originalmente havia resultado. Tornou-se um dos discos mais vendidos do ano e consolidou a fama internacional de João. Que, indiferente a tudo isso, continuou fazendo a sua música - fosse ela comercial ou não. Seja como for, a partir dos anos 60, todo mundo, rigorosamente, gravou tentando reproduzir batida violonística de João Gilberto - dos jazzistas ortodoxos aos grupos de música pop contemporânea. O que faz dele um dos músicos mais importantes do século. Situá-lo na categoria world music é coisa tão tola quanto premiar - postumamente - Tom Jobim como músico de uma coisa denominada latin jazz, em que cabem nomes tão diversos quanto Tito Puente ou Dori Caymmi. É outro balaio de gatos, outro "reparo" que a indústria faz, de forma equivocada, aos nomes importantes da música. Vale lembrar que a premiação de Sting deve muito a João Gilberto, ainda que de forma indireta. O cantor inglês gravou a canção Soberana Rosa, de Ivan Lins, Vítor Martins e Chico César, com letra em inglês de Brenda Russell, rebatizada como She Walks This Earth, faixa de abertura do disco-tributo a Ivan A Love Affair. Como boa parte dos músicos de sua geração, Ivan sofreu influência de João Gilberto. Como tantos outros, tentou, no início, ao violão, repetir a batida de João - sem sucesso, como aconteceu, também, com quase todos. Acabou por criar sua própria versão da bossa nova - coisa que, igualmente, aconteceu com muitos. Soberana Rosa é um abolerado com toque caribenho e fundo bossa-novista. Uma fusão que não seria realizável sem a bossa - mas que, interpretada por um valoroso nome do pop, classifica-se como música pop. Ivan gostou da premiação. Acredita que valorize a música brasileira - e é verdade, no fim das contas: valoriza-a mais do que a premiação em subcategoria de João Gilberto. Ivan está em Tóquio, em plena excursão de divulgação de seu novo disco, A Cor do Pôr-do-Sol. De lá, disse o que acha: "Essa premiação indireta representa um estímulo para a auto-estima do povo brasileiro. Vencer o sexto Grammy é como ganhar o jogo na casa do adversário. É a nossa música ganhando no país deles, mostrando o quanto é bonita. É uma vitória não só para mim, mas que vale para outros artistas e músicos brasileiros." Enquanto isso, em seu retiro monástico, no Rio de Janeiro, João Gilberto continuará a fazer a mesma bossa de sempre.

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