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'Bim Bom' de João Gilberto ganha novas versões

Mais famosa composição do ícone da bossa nova é regravada por Bebel, Ithamara Koorax e Adriana Partimpim

Por Lauro Lisboa Garcia
Atualização:

Em livro, Ruy Castro conta que João Gilberto compôs a música em Juazeiro, em 1956, tentando reproduzir o ritmo das cadeiras das lavadeiras com trouxas na cabeça. Foto: Eduardo Nicolau/AE

 

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SÃO PAULO - Das 11 únicas composições da carreira de João Gilberto, Bim Bom é a mais conhecida. Eclipsada pelo marco revolucionário da bossa nova Chega de Saudade (Tom Jobim/Vinicius de Moraes), quando foi lançada no outro lado do single de 78RPM em 1958, a canção volta com força em três regravações, por cantoras de estilos e gerações diferentes. Além disso, no filme O Homem Que Engarrafava Nuvens, de Lírio Ferreira, ela é apontada como provável elo da bossa nova com o baião. Para os fãs de João, outra notícia boa é que finalmente o álbum Chega de Saudade, que tem a gravação original de Bim Bom, acaba de sair em CD, mas na Inglaterra (leia mais abaixo).

 

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Dentre as gravações mais recentes, Bebel Gilberto, com sua habitual má vontade para dar entrevistas e se aprofundar nas respostas, diz que procurou recriar o arranjo original: "Obviamente, sem o violão do papai, mas com o incrível piano do Daniel Jobim." Ithamara Koorax e o violonista Juarez Moreira gravaram um álbum inteiro só com as composições do baiano, Bim Bom - The Complete João Gilberto Songbook. Na faixa-título, mesclaram samba e baião no arranjo.

 

A abordagem de Adriana Partimpim (codinome lúdico da Calcanhotto) é a mais surpreendente: juntou a bossa de João com a batida de samba-reggae do Olodum, agregando duas vertentes inovadoras da música brasileira, orientadas por dois baianos, João Gilberto e Neguinho do Samba. Caetano Veloso diz que chorou de emoção quando ouviu a gravação incluída no álbum Partimpim Dois. "Desde que ouvi o Olodum pela primeira vez nunca mais consegui desconectar um ritmo do outro. Sinto que são duas levadas com o mesmo incrível poder de síntese. Sempre ouvi o violão do João Gilberto e o Olodum como duas coisas que juntas são uma só", compara Adriana.

 

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A cantora escolheu Bim Bom por ser "uma canção redonda, que fala direto às crianças e que ao mesmo tempo é muito emblemática". E acrescenta: "Quanto antes nossas crianças forem picadas por esse universo cuja porta de entrada é a obra de João Gilberto, melhor. Gosto muito do João compositor."

 

Tom Jobim já havia observado: "Em Bim Bom você vê a dissociação entre o acompanhamento que ele faz do violão e o que ele canta, gerando essa terceira coisa, importantíssima." Caetano também tem a canção em grande consideração. No texto de apresentação do livro de Walter Garcia Bim Bom - A Contradição Sem Conflitos de João Gilberto, o compositor dizia que, comparada às canções de Tom Jobim, Bim Bom parecia brincadeira de criança. "Por outro lado, ela é uma composição de João Gilberto, e, na sua extrema singeleza, apresenta-se como um pretexto para ele exercitar as mais sutis sutilezas de sua invenção", escreveu Caetano. Hoje confirma: "É uma grande música. Como Desafinado e Samba de Uma Nota Só, é um manifesto da bossa nova. E é do João."

 

Ithamara Koorax também procurou de certa forma "fazer justiça" à importância dessa canção-manifesto. "Chega de Saudade era avançada para aquela época, chocou todo mundo. Mas o minimalismo de Bim Bom ainda era muito mais avançado. Muita gente preferiu fingir que não tinha ouvido, porque realmente não conseguiu entender. Tem gente que não entendeu até hoje (risos)."

 

No documentário de Ferreira, João aparece cantando ao violão um dos poucos versos dele mesmo: "É só isso o meu baião/ E não tem mais nada não." A menção ao gênero popularizado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, tema do filme, não é gratuita e não se limita à letra. Em depoimento filmado por Ferreira, Caetano Veloso comenta um parecer de Gilberto Gil, que identifica o baião como uma das prováveis influências da bossa de João. É um ponto de vista pouco discutido. Caetano confirma: "Acho que tudo isso está ligado mesmo. O que Gil falou, o que Adriana fez com Bim Bom." Ele diz que acredita na possível influência do baião na música de João. "Gil acha mais do que eu. Mas é porque João é quase pernambucano, é de Juazeiro, que fica na fronteira de Pernambuco."

 

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Em seu livro, que terá uma segunda edição, revisada, em 2011, o professor e musicólogo Walter Garcia se esmera em explicar a arte do papa da bossa nova e até, sem saber a princípio que o próprio João tinha dito isso, afirmou que a bossa "é samba e não é". No entanto, essa relação com o baião, embora venha sendo discutida em sala de aula, segundo o autor, não constava dos estudos publicados. "Fundamentalmente a batida do João Gilberto é samba, deriva do samba, modifica o samba, reitera o samba", reafirma Garcia. Mas ele vê também uma possível ligação entre a base de João e o núcleo do baião, que "pode ser casual, mas pode ser identificada". Em suma, ele sintetiza essa relação numa frase: "A bossa é o espelho do baião: inverte mas reflete; ou reflete invertendo."

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No livro Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova, Ruy Castro conta que João compôs Bim Bom em Juazeiro em 1956 "tentando reproduzir o ritmo das cadeiras das lavadeiras, quando elas passavam equilibrando as trouxas de roupas na cabeça". Adriana Calcanhotto diz que adora essa imagem das lavadeiras de Juazeiro. "Sempre me vem à cabeça quando ouço ou canto Bim Bom, faz o maior sentido, explica muito da batida. E assim como a bossa nova é e não é samba, como violonista concordo inteiramente com Gil, a bossa é e não é baião. O baião está em (quase) tudo, mas penso que sua marca na invenção da bossa nova é muito clara", afirma a cantora e compositora.

 

O violonista Juarez Moreira diz que tem "uma tese um tanto polêmica" a esse respeito. "Do ponto de vista do ritmo, samba e bossa nova são a mesma coisa. Nós músicos misturamos isso tudo, despudoradamente, com o baião e vice-versa. Minha afirmação é baseada no que sinto, quando toco esses ritmos", diz. Juarez tentou ser o mais fiel possível ao vocabulário rítmico de João em todos os arranjos para suas composições, mas em Bim Bom cometeu "licenças poéticas em torno do universo do baião e do samba", ritmos que "se entrelaçam facilmente".

 

Já a filha do homem, Bebel Gilberto, acha essa questão "muito difícil e complexa". "Afirmar que não tem influência seria um descuido meu, mas também afirmar categoricamente seria muita pretensão", diz a cantora. Pois não é "só isso" o baião de João. Com apenas 1 minuto e 12 segundos na gravação original, Bim Bom encerra uma estética, ao lado de Chega de Saudade, que, todos sabem, mudou os rumos da música brasileira em poucos segundos a mais.

Confira a letra da canção:

BIM BOM (1958)

Bim, bom, bim, bim, bom

Bim, bom, bim, bim, bom

Bim bom

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Bim, bom, bim, bim, bom

Bim bom

É só isso o meu baião

E não tem mais nada não

O meu coração pediu assim, só

Bim, bom, bim, bim, bom

Bim, bom, bim, bim, bom

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Bim bom

Bim, bom, bim, bim, bom

Bim bim

Bim, bom, bim, bim, bom

Ta ca tum ta ca tum ta ca tum

Bim, bom, bim, bim, bom

Tom bom tom bom tom bom

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Só bim bom bim bom bimbim

 

 

'Chega de Saudade' sai em CD na Inglaterra

 

Álbum referencial da bossa nova, Chega de Saudade (Odeon), está fora de catálogo há décadas no Brasil. As cópias da edição original chegam a custar até US$ 150 e uma de capa dura, em melhor estado de conservação, está à venda por US$ 503,21 no site de leilões Ebay. Nunca havia sido lançado em CD, pelo menos na forma como foi concebido em LP. Até que ganhou uma edição digital e expandida na Inglaterra pelo obscuro selo EL. O CD com 24 faixas pode ser comprado nos sites amazon.com, amazon.co.uk e dustygroove.com).

 

Além das 12 faixas do álbum original - Bim Bom incluído, naturalmente -, o CD contém outras três preciosidades: A Felicidade e O Nosso Amor (ambas de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes) e a deslumbrante Manhã de Carnaval (Luiz Bonfá/Antonio Maria). São gravações que só saíram em dois singles de 78 RPM e num raríssimo compacto duplo com as músicas para o filme Orfeu do Carnaval. Além dessas, há outras faixas-bônus no CD, que têm afinidade com o disco, o estilo e o repertório de João, como Hô-Bá-Lá-Lá e Minha Saudade (dele e Donato) interpretadas por Elizeth Cardoso, Os Cariocas, Alaíde Costa, João Donato, Bola Sete e outros.

 

As faixas dos três primeiros LPs de João Gilberto foram reunidas de forma aleatória no CD O Mito, de 1992, à revelia do cantor - da mesma maneira como A Felicidade e O Nosso Amor foram transformadas num afrontoso medley para poder caber no CD. Por conta disso e por adulterações na masterização (como a inclusão de ecos inexistentes nas gravações originais), João moveu uma ação contra a gravadora EMI, que detém os direitos sobre os fonogramas da Odeon. A pendenga perdura até hoje e por conta disso aqueles três discos fundamentais - Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961) - não podem ser reeditados em CD. Esse lançamento britânico, segundo a assessoria da EMI no Brasil, não é oficial e a gravadora "já acionou seus advogados para tomar as medidas cabíveis".

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