Barítono russo Sergei Leiferkus se apresenta com Osesp

Sergei Leiferkus fala ao Estado sobre a obra de Shostakovich, que ele interpreta com a Sinfônica de Estado de São Paulo

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

No início da semana dois velhos amigos se encontraram para uma breve conversa aqui em São Paulo. E que conversa deve ter sido. Os amigos são dois dos maiores cantores russos da história, o baixo Evgueni Nesterenko e o barítono Sergei Leiferkus. O primeiro estava em São Paulo para um recital no Teatro São Pedro. O segundo, para duas semanas de concerto, a partir desta quinta-feira, com a Sinfônica de Estado de São Paulo. Não é apenas a nacionalidade que une os dois. Se Nesterenko trabalhou ao lado de Shostakovich, de quem se comemora o centenário este ano, inclusive estreando algumas de suas obras, Leiferkus herdou dele a tarefa de ser um dos mais importantes intérpretes do compositor patrício. Sorte nossa que o programa de suas apresentações inclua duas de suas maiores criações: desta quinta-feira a sábado, ele canta a Sinfonia nº 13; e, de quinta a sábado da semana que vem, a Sinfonia nº 14. A inspiração para as duas peças é diferente, mas ambas carregam um clima sombrio relacionado não apenas ao momento vivido pelo compositor, mas também aos temas escolhidos. De 1962, a Sinfonia nº 13 é escrita a partir de textos do poeta Ievgueni Ievtuchenko. Seus versos falam do horror cotidiano da vida soviética, discutindo desde o anti-semitismo até a situação das mulheres sob a repressão do governo soviético. Já na Sinfonia nº 14, o tema principal é a morte. Shostakovich já estava doente quando começou a escrever a obra, em 1969. E é a proximidade do fim que surge a partir dos textos escolhidos dentre a obra de poetas como o espanhol Garcia Lorca e o alemão Rilke. Além do barítono solista, a obra tem também a participação de uma soprano - no Brasil, a russa Tatiana Pavlovskaya. Quando falou com o Estado na semana passada, Nesterenko lembrou da experiência de trabalhar com Shostakovich, da amizade, das circunstâncias de sua morte, da certeza de que ele viveria para sempre por meio de sua música. Na tarde de terça, Leiferkus, mais novo que o colega, lembrou dois encontros breves que teve com o compositor. Falou sobre sua obra, o significado que tem para a música russa e o modo como o mundo a vê 30 anos após sua morte. "Tenho cada vez mais certeza de que sua música sobreviverá ao tempo, capaz de dizer algo à sensibilidade de diversas outras épocas", disse. É possível dizer que o clima sombrio, pessimista, une de alguma maneira as sinfonias 13 e 14? Acredito que sim, mas com algumas distinições. Se você me permite, prefiro começar falando da Sinfonia nº 14. Shostakovich estava doente quando a escreveu, a partir de poemas alemães e espanhóis que tinham tudo a ver com seu estado de espírito na época. Naquele momento, uma coisa estava muito clara na sua cabeça: não tinha medo de morrer. Ele acreditava que haveria outro tipo de existência depois da morte. Uma existência na memória, no coração do público, dos amigos. Isso ele revela de maneira fantástica no último número da obra, Morte. Ela está presente de maneira poderosa em toda a obra. A soprano, em determinado momento, canta "Três lírios em meu túmulo". Passagens assim, de tom bastante sombrio, podem subentender a falta total de esperança. Mas, ao mesmo tempo, há a sensação da imortalidade, a certeza de que ele continuará vivo na mente das pessoas. E o interessante nesta peça é o modo como a poesia de García Lorca, por exemplo, e o estado de espírito de Shostakovich se unem, se combinam. Claro, tem gente que acha a música sombria, triste demais. Mas a vida não é feita só de dias de luz. E, para Shostakovich, atravessar os momentos de escuridão era fundamental antes de se chegar à luz. E como essa escuridão se revela ao decorrer da Sinfonia nº 13? A Sinfonia nº 13 é um caso diferente. Nasci depois da 2ª Guerra, mas sei que perdemos muitos amigos, familiares durante o Holocausto. A primeira parte da obra é dedicada a essa história, Shostakovich e Ievtuchenko tentam se colocar no lugar daquelas pessoas para relatar seu sofrimento. O segundo tema é o humor, mas as diferentes visões de humor. A terceira parte fala da história real das mulheres na União Soviética. Foram as criaturas que mais sofreram naquele momento em meu país. Para elas, sobrava todo o trabalho mais duro, nas estradas, ferrovias, além, claro, de todas as responsabilidades domésticas. É uma realidade que o governo nunca deixou chegar ao Ocidente. A quarta parte narra o terror da era Stálin. E a última tem como tema a carreira. Na União Soviética, ter uma carreira, ser carreirista, era uma grande ofensa. Se você se sobressaía de alguma maneira, algo estava errado. Por essas e outras, a obra acabou não sendo recomendada pelo governo. Obras assim fizeram com que Shostakovich tivesse tendo uma relação pouco confortável. E para os intérpretes, como era fazer essa música? Em 1980, em meu terceiro concerto em Berlim Oriental, com a Gewandhaus de Leipzig e Kurt Masur. A idéia era intepretar a Sinfonia nº 13, mas a agência estatal de concertos me chamou e um oficial me disse: "Camarada Leiferkus, temos um problema, você não pode cantar a Sinfonia nº 13, o governo não acha uma boa idéia." E eu disse: "Façam o que vocês bem entenderem, escrevam nos seus jornais que vou cantar a Sinfonia nº 138, mas eu vou fazer a 13.ª." E fiz. Subterfúgios assim eram uma maneira de contornar problemas. Nem todos os músicos russos são dissidentes. E quem ficou no país precisou aprender não a lutar contra o regime, mas, sim, a contorná-lo. Se não havia como atravessar a porta sempre fechada da censura, saímos em busca de outras portas. Mas a cada vez que ouço a Sinfonia nº 13, penso como foi preciso coragem para, naquele momento, escrever aquela música, aquela poesia. O sr. chegou a conhecer Shostakovich, a trabalhar com ele? Muito pouco. Nesterenko foi grande amigo dele. Não posso dizer o mesmo sobre mim. Mas os encontros que tive com ele foram muito especiais. Eu era muito amigo de outro compositor, Kabalevski, e, após um concerto, ele me apresentou a Shostakovich. Fomos jantar e perguntei se ele me receberia em seu apartamento para me ajudar com a Sinfonia nº 13 que, na época, eu estava preparando. Ele disse que sim e nos falamos mais duas vezes. Foi uma grande oportunidade ouvi-lo falar sobre a obra, suas intenções, os efeitos que pretendia. Quando conversei com Nesterenko na semana passada, ele falou com muita emoção sobre a imortalidade de Shostakovich, conseguida por meio da sua música. Trinta anos após sua morte, como o sr. vê a recepção a suas obras? Há dois meses, cantei com a Filarmônica de Londres a Sinfonia n.º 14. A obra encerrava um concerto que havia começado com Mozart. E, no fim da sinfonia, o público aplaudia de pé - o que, em Londres, acontece raramente. Na platéia, atrás de minha mulher, havia um casal já de idade avançada. E, depois do concerto, o senhor comentou com a senhora: "Antes, as pessoas vinham ouvir Mozart. Agora, eles vêm pelo Shostakovich." Acho que isso diz tudo. Quando um compositor está vivo, ouvimos sempre sobre ele, lemos suas entrevistas, ouvimos suas novas obras. Mas, após sua morte, vem um momento de prova. Será que a sua obra será capaz de se manter viva, dizendo algo às pessoas? Será que continuaremos encontrando nela respostas para os problemas do cotidiano? Quando bem-feita, a música de Shostakovich continua tendo muito a nos dizer. Tenho cada vez mais certeza de que sua música sobreviverá ao tempo, capaz de dizer algo à sensibilidade de diversas outras épocas. Sergei Leiferkus. Sala São Paulo (1.484 lug.). Praça Júlio Prestes, s/n.º, Centro, telefone 3337-5414. Hoje, e amanhã,21 h; sáb., 16h30. R$ 25 a R$ 79

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.