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Bach marca o retorno do pianista Lang Lang

Por anos ele não quis tocar as ‘Variações Goldberg’ em público, mas agora lança duas gravações

Por Joshua Baron
Atualização:

É difícil romper com os hábitos. Por isso, as pessoas continuam perguntando “como vai?” durante esta pandemia, que virou o mundo de cabeça para baixo. Um “tudo bem” automático é geralmente a resposta e, por isso, foi algo chocante quando, em entrevista recente, o pianista Lang Lang respondeu à pergunta com uma careta e um grito: “É horrível!”.

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Este é um período difícil no mundo da música clássica, já que as apresentações ao vivo estão paralisadas em todo o mundo. Lang, uma das maiores estrelas e um dos mais bem pagos artistas clássicos, está relativamente a salvo da devastação financeira. Mas ser afastado por forças que estão além do seu controle é algo dolorosamente familiar para ele. Em 2017, ele sofreu uma lesão no braço esquerdo e ficou parado por mais de um ano. “Já tive de fazer uma pausa”, disse ele, no Zoom, falando de sua casa em Xangai. “Desta vez estou pronto, mas não posso dar um concerto. É muito frustrante.”

O retorno de Lang, de 38 anos, depois da lesão foi gradativo, começando com atuações que exigiam menos força muscular, depois retomando os concertos estrondosos – e, ao mesmo tempo, se dedicando a um novo repertório. Este ano, isso significou focar em uma turnê com as Variações Goldberg, de Bach, e uma gravação deste trabalho na Deutsche Grammophon no próximo mês.

Lang deu três concertos na Alemanha antes de todos os demais serem cancelados. Antes de deixar o país, realizou uma gravação de estúdio das Variações Goldberg, em Berlim, e uma ao vivo, na igreja de São Tomás, em Leipzig, onde Bach tocava órgão. Ambas as versões serão lançadas proximamente. Não era esse o plano, afirmou Lang, mas insistiu para sua apresentação ao vivo ser incluída depois de ouvi-la e gostar da sua espontaneidade. Mas disse preferir a gravação de estúdio, que mostra mais profundidade.

Lang Lang, pianista chinês. Foto: Gus Powell/The New York Times

Poucas obras induzem interpretações tão diferentes quanto as Variações Goldberg. Os intérpretes dão sempre seu toque pessoal no caso de obras fundamentais, como os concertos de Tchaikovski e Rachmaninoff, mas, no geral, tais concertos têm uma duração consistente e sonoridade geralmente estabelecida. Mas o conjunto das 30 Variações Goldberg, envolvido por duas interações de uma ária de uma simplicidade de caixa de música, foi escrito com tal austeridade que é como uma tela em branco. Não há manual para a ornamentação; as marcações de tempo virtualmente ausentes indicam que a obra pode durar menos de uma hora ou, no caso de Lang, mais de 90 minutos. A obra pode ser ouvida no cravo ou em pianos modernos, ou até transcrita para outros instrumentos.

Apesar de ser um favorito do público, Lang há muito tempo tem deixado os críticos perplexos com sua habilidade inegável, seu gosto duvidoso e seus maneirismos de estrela pop. E novamente vai dividir os ouvintes. Especialistas em música barroca, em particular, poderão ficar indignados com seus arranjos com ênfase incomum em notas e frases particulares, e o seu rubato – acelerar ou desacelerar o tempo de uma peça. A lenta 25.ª Variação, que dura seis ou sete minutos, vai além de 10 minutos. A versão de Lang para estúdio da ária de encerramento dura quase seis minutos e meio, ante os 4 minutos de muitos pianistas.

Mas, independentemente do que as pessoas pensam sobre a interpretação de Lang, elas não podem dizer que é irrefletida. Ela é imbuída de um sentimento profundo e foram duas décadas na sua elaboração.

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Como todos os estudantes de piano, Lang tocou muito a obra de Bach quando criança, desde os minuetos ao enciclopédico Well-Tempered Clavier. Ele usou trechos rápidos das Variações como exercício, mas nunca tocou a obra na íntegra até depois de chegar ao estrelato como substituto no Ravinia Festival, perto de Chicago, em 1999 – ele tocou de cabeça no meio da noite para alguns músicos amigos.

Lang não queria tocar em público as Variações até que se sentisse pronto. Por volta dos 20 anos, tocou a obra para o maestro Nikolaus Harnoncourt em audição para o Festival de Salzburg. E lembra de o maestro dizer-lhe: “Você toca Bach sem nenhuma imaginação”, insistindo para ele tocar com mais linhas melódicas líricas. A partir de então, Lang buscou conselho de outros artistas, incluindo o pianista e organista alemão Andreas Staier, que lhe mostrou a importância de abordar as Variações Goldberg com rigor acadêmico. Estudar a peça, disse Lang, melhorou seu entendimento da composição. “A obra leva a outro nível de reflexão.”

Com sua cópia da partitura na mão, Lang falou sobre o que aprendeu sobre as Variações Goldberg e como chegou à sua interpretação da obra.

Sua carreira foi construída com concertos românticos, mas você tem feito uma volta no tempo, chegando agora ao Barroco.  Sim, mas tenho tocado muito menos do que o repertório clássico ou romântico. E Bach é um outro planeta. Quando me encontrei com Andreas, ele me disse que essa peça exigia um conhecimento real por trás da estratégia. Não se pode pensar nela como uma peça ou concerto de 10 ou 30 minutos. Ele disse que eu tinha de aprender cada variação com calma e não ficar agitado na Variação 1.

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O que guiou sua interpretação?  É uma peça inteira e ao mesmo tempo são peças separadas. Cada variação tem de ter uma maneira calculada de tocar. Não se pode tocar tudo do mesmo modo.

Acho que você se identifica mais com o rubato e a ornamentação. Isto torna mais difícil encontrar o equilíbrio e as regras do Barroco são muito particulares. Como descobriu qual é o ideal para você?  No caso do rubato é a teoria das raízes da árvore e as folhas crescendo. Neste caso a mão esquerda nem sempre toca a nota raiz (nota fundamental do acorde) na música de Bach. Mas sempre tem de saber onde estão as raízes, e elas precisam ser aparentes. Assim, a linha melódica é um pouco diferente. Na gravação no estúdio, às vezes exagerava no rubato e tinha de voltar porque a linha melódica se desintegrava. Você toca com o mínimo de ornamentação na primeira parte. (Cada sessão das Variações é dividida em duas partes e ambas são repetidas.) Depois na repetição pode ornamentar para dar margem a um pouco de improvisação. Na abertura francesa, a Variação 16, tento tocar mais como se fosse uma peça para órgão. Mas é preciso ser cuidadoso para não ter uma ornamentação estranha que soa como Messiaen ou algo similar. Parte da minha ornamentação foi corrigida por músicos barrocos.

A ária é um exemplo perfeito de como as ‘Variações’ podem ser tocadas de muitos modos.  Quis tocar ligeiramente mais lento do que outros músicos tocam. Isso me dá paz. Mas, obviamente, precisa ser legato. Se consigo realmente conectar cada nota então é possível tocar mais lentamente porque me deixa mais com os pés na terra.

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Na ‘Variação 7’, a Giga, você parece realmente mais solto.  Na repetição toquei os acordes com a sexta e a terça sob a voz principal. É o que aprendi sobre o modo barroco de tocar. Eles frequentemente adicionam sextas e terças baixas para soar como um sino. São mais notas, mas a sensação é mais leve. Este é o caráter da peça. Precisa borbulhar.

O que o retorno da ária no final significa para você?  A Variação 30 é a mais importante para mim. É uma combinação de três canções populares alemãs. Copiei as letras e a terceira é sobre a casa. Isso criou uma grande transição para a ária e sem esta variação acho que ela seria muito mais difícil de tocar, depois de todos aqueles fogos de artifício. Depois do Adágio, a Variação 25, você tem quatro variações que são rápidas e virtuosísticas. É impossível retornar à ária. Mas quando você tem essa canção que evoca uma reunião familiar, na Variação 30, repentinamente entende que está envelhecendo. A verdade é que não precisamos saber demais para tocar a ária na segunda vez. Já é diferente automaticamente. Depois de algumas coisas você mudou. Simplesmente mudou. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINHO

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