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As estrelas da ópera Jessye Norman e Barbara Hendricks lançam autobiografias

Livros das cantoras norte-americanas acabam de sair nos EUA, revelando personalidades completamente diferentes

Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio
Atualização:

 Jessye Norman e Barbara Hendricks nasceram com apenas três anos de diferença – em 1945 e 1948, respectivamente. Começaram a carreira no final dos anos 1960, início dos 1970. Limitaram suas atuações no palco de ópera a poucos e significativos papéis, fazendo do universo de canções seu habitat natural, com destaque para os spirituals norte-americanos. Em suas autobiografias, recém-lançadas nos Estados Unidos, no entanto, emergem duas personalidades completamente diferentes – e uma maneira bastante distinta de olhar para o passado, o presente e o futuro.

A cantora norte-americanaBarbara Hendricks em performance no teatro de Burgos, na Espanha Foto: Felix Ordonez/REUTERS

 

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Há pontos de contato nas narrativas de Stand Up Straight and Sing!, de Norman, e Lifting my Voice, de Hendricks. As duas, afinal, nasceram e cresceram no sul dos Estados Unidos, na década de 1950, quando ainda estavam em vigor as Leis de Jim Crow, conjunto de legislações locais promulgadas por estados sulistas que determinavam a segregação racial e limitavam os direitos civis de afro-americanos.

 Tanto Norman como Hendricks frequentaram escolas exclusivas e experimentaram em primeira mão o preconceito. A família de ambas esteve ligada à igreja, que, nos anos 1960, acabaria por se tornar espaço de discussão política em torno da luta pelos direitos civis. E as duas se lembram do impacto provocado pelas palavras de Martin Luther King – assim como da desolação provocada pela notícia de seu assassinato. Mas a forma como elas recordam essas experiências não poderia ser mais diferente.

A cantora Jessye Norman apresentando-se em concerto em homenagem a Martin Luther King Foto: Reprodução

 

Norman fala apenas – e sem se aprofundar – do modo como desde cedo criou um mundo próprio à sua volta, nas horas a fio passadas no quintal com os amigos, a observar a natureza, o vento, as folhas das árvores. E, nos momentos em que esse mundo idílico se quebrava, ela encontrava na família – em especial nas “mulheres fortes”, sua mãe, tias e avós – a certeza de que a igualdade não apenas entre brancos e afro-americanos, mas também entre homens e mulheres, era algo indiscutível.

 No ambiente familiar de Hendricks, a igualdade também era ensinada às crianças. Mas as discussões políticas, em geral, não eram compartilhadas com elas. E os fragmentos de notícias e debates entreouvidos nas tardes e noites de discussão a levaram a criar sozinha uma ideia do que seria este mundo real – um mundo povoado, acima de tudo, pelo medo, pela insegurança e pela descoberta, às vezes dolorida, da omissão familiar em questões delicadas, como a decisão de sua irmã mais velha de se casar com um homem branco e se envolver com a NAACP, associação que lutava pelos direitos civis de afro-americanos.

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 O modo como relembram essas e outras experiências é bastante significativo no que diz respeito à diferença do tom das duas autobiografias. O livro de Norman, no final das contas, lê-se como um conto de fadas em que o talento se impõe sobre toda e qualquer dificuldade, atropelada sem grandes dúvidas. Já em Lifting my Voice, o talento e a paixão pela música são o eixo segundo o qual Hendricks tenta entender o mundo em que viveu e vive – e as transformações pela qual ele passou e segue passando.

 Em outras palavras, o que em Norman é exaltação, em Hendricks é a necessidade de uma reflexão constante a respeito do modo como as experiências pessoais definem a personalidade de um artista. E isso vale também pela recuperação dos momentos puramente musicais de suas trajetórias. Norman refere-se a episódios de grande realização artística e a colegas envoltos em auras de grandeza e excepcionalidade. Hendricks não deixa de relatar a decepção perante aqueles que reconhece como seus modelos – a insegurança de sua mestra Jennie Tourel, o egocentrismo histérico de Leonard Bernstein e Maria Callas, a decadência de um Herbert Von Karajan obcecado pela perfeição técnica no final de sua vida.

Para os amantes da ópera não faltam episódios saborosos sobre os bastidores do mundo musical. E o que essas cantoras fizeram sobre o palco as coloca como duas das mais importantes artistas da segunda metade do século 20. Mas Stand Up Straight and Sing! revela pouco mais de Jessye Norman em um prazeroso exercício de autorreferência, enquanto Lifting my Voice é uma profunda e sensível investigação de Barbara Hendricks sobre os caminhos da memória. TRECHOS:Stand Up Straight and Sing! (Editora HMH, 316 págs, R$ 43, versão e-book), de Jessye Norman“Nós nos movíamos como uma unidade, nosso pequeno grupo de amigos. Ele era composto de meninos e meninas. Fazíamos tudo juntos – ensaios do coral e atividades na escola, nas igrejas, nos escoteiros. A amizade era descomplicada porque, apesar da indignidade das Leis de Jim Crow e da atmosfera hostil criada pelo comportamento detestável de brancos que continuavam a se insurgir contra nós, sentíamos que este também era o nosso país, porque nossas comunidades e nossos pais e nossa história nos diziam isso. Nossas vidas eram protegidas por um senso de pertencimento, pela amizade, por nossos pais, pela cidade. (…) Ser vizinho de alguém tinha um significado – e ajudávamos uns aos outros. Havia um elemento espiritual que nos levava a isso, porque ajudar ao próximo era parte da busca por servir à fé e ao nosso Criador.”

Lifting My Voice (Chicago Review Press, 488 págs, R$ 43, versão e-book), de Barbara Hendricks“Nós éramos alertados pelos nossos pais e professores: ‘sempre que estiverem na presença de brancos, mesmo crianças, comportem-se e não chamem atenção’. Eu desejava ter o poder mágico para me tornar invisível no ônibus ou nas ruas, sempre que íamos à cidade. Sempre que estávamos longe de casa, sabíamos que não precisávamos fazer nada de errado para ter um problema. Como alguém evita estar no lugar errado na hora errada? Qualquer lugar poderia ser o lugar errado. Como o narrador de O Homem Invisível, de Ralph Ellison, eu também queria ficar invisível e me esconder da humilhação fervente que me acometia sempre que sentia medo. Todos os dias na escola nós abríamos os livros de segunda mão que nos eram enviados quando as escolas para os brancos recebiam novas edições. Mesmo nossos livros eram lembretes constantes de que éramos considerados inferiores. Nossos laboratórios de ciência eram um insulto. Como ninguém esperava que nos destacássemos não havia razão para nos oferecer instalações adequadas para o estudo.”

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