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As cinco décadas de 'Time Out', o estranho no ninho do jazz

Há meio século, Dave Brubeck lançou o disco clássico que vendeu mais de um milhão de cópias

Por Roger Marzochi
Atualização:

O trote do cavalo marcando o compasso, o vento de encontro ao rosto. E, contrapondo-se ao movimento, o som. O que para alguns isso é simplesmente cavalgar, para outros, é inspiração musical. Foi essa sensação rítmica que levou Dave Brubeck a se aventurar no jazz, ao criar contrapontos aos sons da fazenda onde vivia, e na qual gostaria de ser caubói. Hoje, aos 88 anos, orgulha-se de ter não apenas criado há cinco décadas "Time Out", o disco de jazz que vendeu mais de um milhão de cópias, mas também por ter sido aquilo que hoje é exatamente como ele deseja ser lembrado: o "cara que abriu as portas", ao fundir jazz com música clássica e por conseguir levar seus filhos pelo mesmo caminho.

 

Na realidade, os celebrados 50 anos não marcam exatamente a data de lançamento do disco. As sete músicas do álbum foram gravadas de 25 de junho a 18 de agosto de 1959, mas o que praticamente se tornaria uma obra de arte e um sucesso de público, pareceu "nada comercial" à Columbia, que estranhava tanto as músicas como a capa do artista Neil Fujita, e só o lançou em 1960.

 

O estranhamento também se deu em parte do público e entre alguns músicos à época por fatores que então contaminavam a sociedade americana. Primeiro porque Dave, o sax alto Paul Desmond e o baterista Joe Morello eram brancos e o contrabaixista Eugene Wright, negro. O racismo ainda era uma barreira forte naquela época. Ao ponto de, em seu livro de memórias, o presidente americano Barack Obama ligar Brubeck às últimas recordações do pai. "Ele me entregou uma bola de basquetebol e alguns discos de músicas africanas, que dançamos juntos, e me levou para assistir a um concerto de Dave Brubeck. Depois disso, nunca mais vi meu pai."

 

Brubeck deixou de tocar em vários clubes e universidades que se recusavam a deixar Eugene subir ao palco. Em contrapartida, o mesmo sofreu o "branquelo" Bill Evans quando entrou para a banda do trompetista Miles Davis, que também experimentava novos acordes e compassos no jazz em seu "Kind of Blue", lançado em agosto de 1959. Além de branco, Evans havia substituído Red Garland, o que provocou protestos do público negro, lembra o jornalista Ruy Castro, em sua obra "Tempestade de Ritmos".

 

Até Miles criticava Brubeck. Segundo Dave, o trompetista lhe disse que ele até tinha swing, mas a sua banda não. O mesmo diriam alguns críticos, que rotularam sua música como "West Cost Jazz", o que virou uma sinônimo de música de "brancos". "Eu me preocuparia se Duke Ellington não gostasse", diz Brubeck em documentário gravado pela TV Educativa da Carolina do Sul, em 2001. Duke, aliás, perdeu para Brubeck a competição pela capa da "Time" em 1954, o que deixou o protagonista com um misto de alegria e tristeza. Duke pode ter feito como quando perguntado sobre o que fazia ao não poder entrar em um hotel pela cor da sua pele. "Eu reunia as forças necessárias para franzir a testa, e escrevia um blues", dizia segundo o documentário "A História do Jazz", de Ken Burns. Mas, no ano seguinte, Dave fez uma música para o amigo, "The Duke".

 

Fora do tempo - As músicas do cinquentão "Time Out" soavam tão estranhas à época porque Dave é apaixonado também por música clássica, de onde ele trouxe para o jazz o compasso composto, o poliritimismo. Ele tirou o blues de seus 12 compassos e igualmente até então imutável tempo 4/4 ou 3/4, e a politonalidade, tocando acordes que fazem contrapontos.

 

Sua mãe era professora de piano, dava aulas o dia inteiro e, após o jantar, ainda praticava. Apesar de ouvir as músicas que ela tocava, e também aprender a tocar, ele sonhava mesmo em ser como o pai, fazendeiro. Mas a mãe lhe ensinou a pensar em música mesmo em cima do cavalo, ouvindo o som da fazenda, o que ele encarava como um passa tempo.

 

Por isso, ao desistir de faculdade de veterinária no segundo ano, Dave entrou para a faculdade de música, saindo de lá apenas sob o juramento de nunca lecionar. Ele podia escrever as notas musicais, mas não conseguia lê-las. "Deve ter sido o maior bloqueio mental de todos os tempos", dizia Dave. Nem o saxofonista Desmond, que conhecera Brubeck num octeto formado após sua graduação, conseguia entender o que saia daquele piano. Ele chegou a deixar a banda, levando Brubeck a ter que vender sanduíches em escritórios. Eles só voltam a se ver quando, após machucar o pescoço nas praias do mesmo Havaí onde tocou para Obama. Brubeck perdeu o emprego na outra banda que reunira, e convidou Desmond a se encontrarem novamente.

 

No ritmo - Assim, surge o "The Dave Brubeck Quartet", criado em 1951, que só recebeu Morello na bateria em 1956 e, com ele, Dave conseguiu o ritmo que tanto buscava, apesar de Desmond pedir a saída do baterista logo no início. "Nos bastidores, Joe Morello tocava (e faz o som da batida da bateria). Lá tinha o 1, 2, 3, e 4 e 5. E Paul tocou um contraponto. E eu disse que queria essa melodia no álbum porque estava no compasso 5/4", diz Brubeck, também na entrevista à TV americana. Assim nascia "Take Five". Outra composição que mostrava que Brubeck não desprezava o tempo, apenas o dominava a ponto de se colocar fora dele, é a música "Blue Rondo a la Turk", em 9/8, cujo ritmo Brubeck buscou na Turquia.

 

"Eu o ouvi pela primeira vez aos 22 anos, e achei também estranho, porque ele era diferente do Charlie Parker, do Miles e do Coltrane. Ele não usava as inovações do bebop. Ele pegou do classicismo europeu e pôs swing, Blue Rondo, por exemplo, me faz lembrar Joseh Haydn", conta o pianista brasileiro Marcos Borelli, 43 anos, que reuniu músicos para tocar a obra de Brubeck em casas de espetáculo de São Paulo. Em seu último CD "Idàrúdapó", as duas primeiras faixas "Choro" e "Playground" carregam influências do pianista americano.

 

 'Cozinha' familiar - Essa foi a "cozinha" que temperou o jazz de Brubeck. No jargão musical, a bateria e o baixo, e em alguns momentos o piano, fazem a "cozinha" para os solistas. São desses instrumentos que emergem a base dos acordes, as variações das quatro principais das sete notas musicais, e o ritmo. Outros discos com experimentos com tempos atípicos dos jazz se seguiram até 1967, quando Dave deixou a banda para ficar mais tempo em casa em Wilton, Connecticut (EUA), para criar os filhos ao redor da música, compondo oratórios, músicas sacras e sinfonias. "Nada faz um pai se sentir tão orgulhoso quanto tocar com seus filhos e ver o público ficar de pé e ir à loucura", disse Brubeck, em entrevista exclusiva ao Grupo Estado.

 

A intensa produção e o desejo de ensinar música aos filhos fizeram com que sua casa se transformasse na "cozinha" da qual o velho Dave mais se orgulha. Quatro dos seus seis filhos são músicos e, destes, três também são compositores, que já na década de 70 fazia turnês. A família Brubeck manteve-se unida, até hoje, por meio da música. Já que ele não parava mesmo em casa, porque não todos tocarem juntos? "Algumas famílias vão pescar... e nós tocávamos em concertos em todo os Estados Unidos, Europa, Austrália e até no Brasil", diz o filho Chris.  

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