Art Ensemble of Chicago e a música do fim do mundo

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Por Agencia Estado
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A música-do-fim-do-mundo do Art Ensemble of Chicago encerrou, no domingo, o Free Jazz no palco Club do Jockey, em noite inaugurada pelo saxofonista tenorista Ravi Coltrane, filho do lendário também tenorista John Coltrane, um músico sério, aplicado, que desfaz um pouco da perspectiva reconstrucionista da escola de Winton Marsalis e se prefere moderno, mais pela projeção do que pela investigação. É uma postura cujas implicações musicais são menos fáceis de perceber. Ravi está num lugar pouco claro entre a tradição e a ousadia. Não será o revolucionário que foi o pai, e isso deve ser custoso. A busca pela própria voz acaba por determinar indecisões conceituais e a música de Ravi reflete a indecisão. Articulada, não vai muito além da sintaxe fundamental do jazz; moderna, está presa a certas convenções com que o jovem músico não quis ou não soube romper. Essa indecisão foi ainda a de Hamilton de Holanda, o bandolinista carioca, radicado em Brasília, de 24 anos, a quem coube abrir o festival no palco Club, na sexta-feira. Hamilton é habilidoso e inteligente, também afoito e grandiloqüente. Toca muito bem, muito rápido, muito certo - e é pouco sutil. Não faz perguntas, oferece respostas. No contraplano, ainda na sexta-feira, o baterista Max Roach apresentou um espetáculo cansado, a voz de uma expressão esgotada - para ele esgotada. A música respira, como mostraram, no sábado, o pianista cubano Chuco Valdés, o brasileiro João Donato e o contrabaixista norte-americano, fundador do gênero, como Roach, Ray Brown. O domingo começou morno, espelhando a expressão séria de Ravi Coltrane. Ele é compenetrado. Ele é sutil. Ele provoca reflexão. Ele não faz grande música, mas se expõe, materializando a questão que está no centro da discussão sobre o jazz do fim de século: exatamente como devem ser desobedecidas as fronteiras canônicas do gênero? Uma das respostas está no exercício do caos urdido pelo trio - que já foi quinteto - Art Ensemble of Chicago. A música deles é urbana e só poderia ter surgido na cidade fria, entre edifícios enormes dos quais se avistam os engarrafamentos da megalópole - no palco do Art Ensemble, uma luz amarela, daquelas que anunciam a porta das garagens, grita sua freqüência pré-progamada de claro-escuro incessantemente, incessantemente. O Art Ensemble, para quem o ouça desavisadamente, é quase panfletário. Está ali para anunciar a desordem, a desesperança, o apocalipse. Soa, ali, para dizer que não há esperanças, não há possibilidade de reorganizar o mundo. Pré-pós-modernos, os músicos pintam os rostos, como índios, usam gorros, como rappers, colares, como aborígenes, chapéus redondos como mulçumanos, meias coloridas, como se faz nos filmetes comerciais de milk shake. Tocam saxofone, baixo, percussão convencional, gongos, sinos, ferrinhos, pedaços de plástico, sirenes. Não usam instrumentos harmônicos - não há harmonia no fim. Cantam cantos mântricos como se estivesse em cerimônias religiosas de algum lugar no interior do continente. O sax cacofônico imita o barulho das ruas. A desordem - programada - diz que apesar do instinto de sobrevivência, não há saídas. Curiosamente, o resultado é menos o lamento do que a advertência: o Art Ensemble of Chicago toca a trilha do lugar onde o ser humano não deve chegar.

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