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Argentina custou a reconhecer Piazzolla

Nos anos 50, compositor foi acusado de deturpar e americanizar o tango, quando, na verdade, expandia as fronteiras de sua linguagem sem abandonar a essência

Por Agencia Estado
Atualização:

Bernardo Bertolucci queria a música de Astor Piazzolla na trilha sonora de seu Último Tango em Paris. Um atraso do compositor argentino e o diretor italiano pediu a outro argentino, o saxofonista Gato Barbieri, radicado nos Estados Unidos e experimentado em música para cinema, que suprisse a falta. Alguns anos depois, Piazzolla lançaria em disco a única das canções que, afinal, tinha ficado pronta para o Tango. Barbieri fez um belo trabalho, mas seu tema central para a obra de Bertolucci é coisa menor perto da canção Jeanne y Paul, de Piazzolla (Jeanne e Paul são os nomes dos personagens principais). O mestre do bandônion não costumava tocá-la em público. O selo Movieplay a lançou, no Brasil, num disco que passou despercebido, no início da segunda metade dos anos 90. A composição de Piazzolla, por estranha que possa parecer a informação, é mais parecida com o filme de Bertolucci do que a de Barbieri. Retrata melhor a face trágica dos personagens, exprime de forma mais eloqüente o fracasso de sua tentativa de fugir do amor - e de alcançar o amor. É mais tango. Entretanto, Piazzolla foi massacrado, na Argentina, quando surgiu, nos anos 50, com o Octeto Buenos Aires, por descaracterizar o gênero, por desvirtuar seus sagrados cânones. Piazzolla precisou ser, primeiro, reconhecido na Europa (e mesmo no Brasil) para que os portenhos lhe dessem valor. Já haviam feito isso com o próprio tango, nascido no cais do porto, dos dois lados do Rio da Prata. Era música de negros - de estivadores, prostitutas, proxenetas, de bandidos e desocupados. Os navios levaram o tango para a Europa, onde ele ganhou os salões da classe média e depois da nobreza, para o escândalo dos puristas que deploravam sua dança lasciva e queriam proibi-lo nos ambientes seletos (nas margens do Rio da Prata, apenas os homens dançavam; o tango era proibido às mulheres). A polêmica teve fim com a intervenção do papa Pio X. Chamada a opinar, Sua Santidade disse não ver nada demais na dança. A Argentina aceitou o tango - e não aceitou quando Piazzolla mexeu no formato consagrado, trazendo para a composição e orquestração elementos da música clássica camerística e alguma coisa do jazz. Piazzolla foi alvo de campanha difamatória semelhante à sofrida por Tom Jobim (e João Gilberto) na estapafúrdia oposição bossa nova-samba. Havia deturpado, estrangeirado, americanizado o ritmo nacional argentino - quando, na verdade, havia ampliado a fronteira de sua linguagem, sem abandonar-lhe a essência. A música piazzolliana é tão passional, essencialmente triste, trágica e portenha quanto o mais puro Gardel. E nunca mais - lá se vão quase 60 anos - surgiu uma sonoridade que tão bem refletisse a atmosfera de Buenos Aires. Não existe no mundo retrato musical assim preciso.

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