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Análise: Naná Vasconcelos produzia manancial sonoro e sensorial

Músico foi para o mundo, impressionou grandes profissionais e criou uma imensa rede de amizades sonoras por onde passou, mesclando mútuas influências

Por Lauro Lisboa Garcia
Atualização:

Ele dizia que nasceu músico, aprendeu tudo sozinho. O berimbau era seu terceiro braço. Instrumento rudimentar, composto de uma vara, uma cabaça e um fio de arame esticado, nas mãos de Naná Vasconcelos ganhou outra dimensão, com seu poder de orquestrar ritmos, estilos e timbres. Os sons guturais que produzia com a boca, e reverberavam em looping como um grito primal e misterioso, tornaram-se suas marcas nos últimos anos junto com o berimbau. Até sua inconfundível risada se fundia ao manancial sonoro como música que domina pelo poder de transe.

Senhor de tambores de todos os ritmos, Naná era uma espécie rara de artista, em que se harmonizava a inquietação por sempre se reinventar a partir das mínimas células de instrumentos ancestrais, a integração com elementos naturais (extraía beleza sonora até da água) e a generosidade que o levou a criar projetos de inclusão social por meio da música com crianças carentes no Recife e o projeto Língua Mãe, unindo meninas e meninos de Angola, Portugal e Brasil em oficinas e show, registrado em DVD.

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Descobriu em Pernambuco uma outra África que, como ele disse, só existia aqui. Foi para o mundo com esses elementos na bagagem, impressionou grandes músicos e criou uma imensa rede de amizades sonoras por onde passou, mesclando mútuas influências. O maracatu era um de seus pontos de referência sonora, a partir da influência embutida nos rituais afro-brasileiros como o candomblé.

Um dos grandes feitos de Naná foi reunir centenas de batuqueiros de nações rivais de maracatu na abertura do carnaval do Recife. Ficou um tanto limitado a essa atividade na terra natal na última década, mas continuou provando sua capacidade de requintar outros projetos, até com música clássica.

O carisma de Naná contou muitos pontos para contribuir no sucesso dessa conjunção de elementos. Seu nome e seu estilo estão cravados em inúmeros discos importantes no Brasil e no exterior, como o clássico Dança das Cabeças, com Egberto Gismonti, de 1977, até a recente parceria com Zeca Baleiro e Paulo Lepetit, no álbum Café no Bule, de 2015.

Porém, nada do que está gravado se compara ao efeito que a música Naná produzia ao vivo, pela força do elemento sensorial que a acompanhava. Um dos momentos mais sublimes, nunca registrado em discos, porque era não apenas pra ser ouvido, mas visto e vivenciado, era quando ele dividia a plateia, de um lado fazendo murmúrio contínuo com a boca, representando a correnteza do rio, e de outro batendo palmas descompassadas, como gotas de chuva batendo na água. Alternando ritmos, velocidades, volumes e tons, o espetáculo aos olhos do público era ele, como regente hipnotizador, mas Naná nunca se mostrou maior do que o que (o) tocava.

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