Análise: Aos 80 anos, Bob Dylan é urgente e necessário aos latino-americanos

Há 80 anos, nascia Bob Dylan, um dos principais músicos de sua geração e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura

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Por Julio Maria
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Antes que este senhor Robert Allen Zimmerman, que ficaria conhecido depois como Bob Dylan, colocasse os pés no mundo há exatos 80 anos, em 24 de maio de 1941, na pequena cidade de Duluth, um vilarejo exportador de minério de ferro ao norte de Minnesota, nos Estados Unidos, já existia o protesto, já existia o violão e os dois juntos, protesto e violão, já haviam se encontrado em muitas figuras humanas, desde as cantigas de escárnio da Idade Medieval. Para ficar em apenas duas criaturas que Zimmerman conhecia bem, Leadbelly, um homem negro nascido em 1888, passou boa parte da vida na prisão por ter matado um branco e esfaqueado outro tocando violão de 12 cordas, bandolim, gaita de boca e acordeão enquanto cantava versos inspirado nas notícias que lhe chegavam.

Bob Dylan no Newport Folk Festival de 1965, em Rhode Island Foto: AP Photo/Jeff Robbins

Só em 1938 ele mandou uma carta em forma de canção para o presidente Franklin Roosevelt com Dear Mr Roosevelt e falou do indigno caso Scottsboro Boys, quando nove homens negros da cidade de Scottsboro foram condenados à morte por uma controversa acusação de estupro a duas mulheres brancas em 1931. Mais de dez anos depois, antevendo a derrocada de Hitler no derrocável ano de 1942, cantou o blues Mr Hitler: “Nós vamos destruir Hitler / Vamos destruir Hitler algum dia / Você não é nenhum ferro, você não é uma rocha sólida / Você não é nenhum ferro, você não é uma rocha sólida / mas nós, americanos, dizemos: ‘Sr. Hitler tem que parar!’

O outro homem é Woody Guthrie, um dos criadores do folk pré-moderno, atuante nos anos 40 e redescoberto por projetos de gravadoras nos 70, nos 80 e em 2003. Como Leadbelly, o branco Woody, depois de passar os 55 anos de vida sendo visto como um comunista pelos conservadores, fez a cabeça de Zimmerman com apenas um violão folk (nada blues) e alguns bons versos. O tampo de seu instrumento trazia a frase “esta máquina mata fascistas” e músicas como a nacionalista This Land Is Your Land acabou inserida nas escolas de ensino primário nos Estados Unidos como um hino quase obrigatório. Tear The Fascists Down (“Derrubar os Fascistas”, mostrando que a destruição dos fascistas se tornou uma obsessão depois da entrada dos EUA na Segunda Guerra) e mais 124 músicas gravadas em 1944 desapareceram e só foram descobertas em 2003, quase 40 anos depois de sua morte, por uma siciliana moradora do Brooklyn que resolveu ver o que havia em alguns contêineres de papelão jogados em seu porão.

Mas quando Zimmerman usou todo esse material de indignações para se tornar Bob Dylan, algo desses e de muitos cantadores do mundo, dos tocadores palestinos de oud contrários à invasão de suas terras pelos recém chegados judeus aos violeiros de Caruaru versando as dores da seca, todos pareciam um só. O 'folkers' invisíveis dos anos 40 mimetizaram-se em um homem que entendeu neles a força que poderia ter um violão e uma voz cantando letras bem construídas. Dylan, já não mais um judeu, politizou a canção popular para além do que fizeram Leadbelly e Woody Guthrie em tempos não televisionados e usou a máquina industrial para amplificá-la. É a partir de sua figura que os três pês, a poesia, a política e o pop, se juntam para criar o estado do pós entretenimento no rock dos ainda eufóricos Elvis e Beatles.

A América Latina recebeu Dylan à sua maneira. Por aqui, as letras e o aço de seu violão tiveram uma força política maior por chegarem em períodos sombrios e em meio a uma gama de crimes militares produzidos por ditaduras sob as quais o próprio autor jamais viveu. Se ser Dylan nos Estados Unidos requeria coragem, o ser na porção Sul do Equador era como colocar a cabeça a prêmio. Ao fazer do protesto sua matriz, suprimindo mesmo valores artístico ao usar harmonias cruas e violão e gaita primários, Dylan se agigantou ao acertar os corações dos injustiçados. Ali, o que se fazia não era música, mas denúncia. E seu alvo não era seu país, mas o mundo. Um rápido teste do tempo prova sua proeza. Ouçamos neste 24 de maio de 2021 o que ele diz em Blowin’ in the Wind, lançada no álbum The Freewheelin’, de 1963: “Quantos anos algumas pessoas podem existir até que sejam permitidas ser livres?/

Quantas vezes um homem pode virar sua cabeça e fingir que ele simplesmente não vê? / Quantas orelhas um homem precisará ter até que possa ouvir as pessoas chorar? E quantas mortes serão necessárias até que ele saiba que pessoas demais morreram?” Os artistas das Américas espanhola e portuguesa o ouviram como um libertador e empunharam seus violões. Geraldo Vandré, no Brasil, foi submetido a um exílio depois de dylanizar com força sua Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, em 1968. As notícias sobre tortura contra Vandré nunca foram confirmadas e ele faz silêncio sobre o assunto desde 1973, quando retornou do exílio. Victor Jara, no Chile, foi morto aos 40 anos assim que o general Augusto Pinochet chegou ao poder, em 1973, depois de cantar seu Blowin In The Wind em Plegaria a un Labrador: “Liberta-nos daquele que nos domina na miséria”. León Gieco, na Argentina, se tornou, com sua gaita e seu violão, o Bob Dylan portenho e levou a Mercedes Sosa o vigiado hino Sólo le Pido a Diós. Silvio Rodrigues, em Cuba, com uma proposta musical mais trabalhada, trouxe uma poesia humanista e libertária para criar, com Pablo Milanés e Vicente Feliú, a altamente politizada Nova Trova Cubana.

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Mas talvez seja o Brasil o lugar onde os fragmentos do espírito de Dylan se incorpore tantas vezes, em tantos artistas diferentes, o tempo todo. Depois de Vandré, a lista só cresceu: Zé Ramalho, Belchior, Raul Seixas, Gonzaguinha, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Zeca Baleiro, Chico Cesar... Aos 80 anos, Dylan consegue ser mais necessário a cada ano e impressionantemente atual.

Quatro momentos em que Dylan se materializou na obra de artistas brasileiros.

1. Chico César em 'Os Reis do Agronegócio'

2. Zé Ramalho em 'Batendo na porta do Céu'

3. Gal Costa canta 'Negro Amor' (Versão de Caetano para 'It's All Over Now, Baby Clue')

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4. Belchior em 'Apenas Um Rapaz Latino Americano'

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