Análise: Ao cancelar artistas russos, Ocidente pode calar também uma poderosa resistência

Banir artistas que certamente estão repudiando Putin com forças que não podem ser ditas, mas expressas em arte, é preocupante

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Por Julio Maria
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Algo em breve vai começar a ficar incômodo no cancelamento da arte e do entretenimento russo mundo afora, com teatros banindo nomes da ópera ao cinema que não se posicionam veementemente contra Vladimir Putin. A princípio, o pensamento comum conclui com certo regozijo: “Ótimo, Putin precisa sentir que está cada vez mais isolado. E que sinta isso por todos os lados.” Mas, logo, um sinal acende: “E os artistas russos que quiserem se expressar justamente contra Putin pelas artes, já que não podem fazê-lo publicamente, como querem as entidades que os cancelam?” Sim, na corte dos canceladores – e aqui não estamos falando de redes sociais, mas dos diretores da competição Eurovision, do Festival de Cinema de Cannes, do inglês Royal Opera House e do Festival de Veneza – os que não declaram repúdio ao repudioso estariam automaticamente apoiando a invasão e a morte do povo ucraniano.

Nadezhda Tolokonnikova, cantora da banda punk russa Pussy Riot, presa em 2012 pelo governo de Putin Foto: REUTERS Sergei Karpukhin

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Há um fio delicado nisso. Alguns representantes da alta cultura russa têm de fato ligações estreitas com o poder. Valery Gergiev, até então diretor da Filarmônica de Munique, na Alemanha, foi demitido por sua proximidade com o Kremlin e seu silêncio ao ser instado a declarar indignação pelos atos de Putin. A soprano Ana Netrebko teve uma temporada com a Ópera do Estado Bávaro, na Alemanha, também cancelada por não convencer ninguém de seu repúdio à guerra, mesmo depois de postar em seu Twitter ser contra a invasão – post que ela mesma retirou. E ninguém ainda falou do saxofonista de jazz Igor Butman, 60 anos mas já lendário por sua carreira nos Estados Unidos ao lado de Grover Washington Jr., Wynton Marsalis e tantos outros. Butman, a essa altura, não deve mais ter uma carreira em solo norte-americano. Em março de 2014, ele e outros artistas russos assinaram uma carta aberta de apoio à intervenção militar da Rússia na Ucrânia e à anexação da Crimeia pela Federação Russa.

Mas são os artistas que não estão visivelmente nem de um lado nem de outro, mas possivelmente repudiando Putin com forças que não podem ser ditas, mas expressas em arte, o que mais preocupa. Seria mesmo correto obrigá-los, como residentes da Rússia, um estado de liberdades sufocadas por espionagem, rastreamento digital, prisões, envenenamentos suspeitos, homicídios mal explicados e sumiço de oposicionistas, a dizerem em alto e bom som considerarem Putin um gorila? Alguém garantirá que seus descendentes estarão a salvo e que eles não sumam? Haverá apoio quando forem cancelados no mercado cultural da própria Rússia do pós guerra? 

A corrente contra os artistas russos não vai terminar tão cedo. Festivais de jazz pelo mundo, com temor do cancelamento – este sim, pelas redes sociais – seguirão banindo de seus line-ups de forma silenciosa mesmo jovens jazzistas russos de ideias libertárias. Festivais de cinema, gastronomia, óperas e balés levarão quanto tempo para escalar novamente nomes terminados em “shov” e “iev” a fim de evitarem ligações com as lembranças do trauma? Depois de até agora centenas de vidas ucranianas, Putin pode levar para a vala a arte de seu país.