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Análise: Aldir Blanc soube dar à linguagem popular um enxugamento de profundidade oceânica

Zuza Homem de Mello analisa a obra do compositor Aldir Blanc, morto nesta segunda, 4, aos 73, vítima do coronavírus

Por Zuza Homem de Mello
Atualização:

"Glória a todas as lutas inglórias” pode ser um dos epitáfios ao letrista da canção brasileira dos tempos que estamos vivendo. Ou “O Brazil não conhece o Brasil”. 

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Seus versos são ditados populares nascidos de uma cabeça que não tinha direção certa, girando o tempo todo, como a de um bêbado trajando luto, nos 360 graus do círculo infinito da poesia, do lirismo, do sarcasmo, do satírico, do surpreendente, do atrevido, do teimoso. Uma bola de futebol prateada como o lustre que ilumina o cabaré. 

Nenhum outro letrista brasileiro provocou mais surpresas do que Aldir Blanc. Entre o refinamento e o salão de sinuca ele soube dar à linguagem popular um enxugamento de profundidade oceânica. 

Aldir Blanc morreu aos 73 anos, no Rio de Janeiro Foto: Alaor Filho/Estadão

 “E a ponta de um torturante band-aid no calcanhar” estava no bolero que ele mesmo definiu como o lacrimoso que se sai bem no fio da navalha. “O amor é um falso brilhante no dedo da debutante” resumiu e nomeou aquele famoso show. “A gente não precisa que organizem nosso carnaval” desdisse o que virou regra no maior das festas populares. “Naco de peru, lombo de porco com tutu e bolo de fubá, barriga d’água” sincopava o sentido do samba antes mesmo das notas da melodia. “Quiseram autuar nossos siris, mas minha patroa subornou a guarnição então os cara duras mais gentis levaram a gente e os siris pra casa da Abolição” descreve o confronto com a autoridade venal. “Yolanda aposta que assim a nível de proposta o casamente anda uma bosta e a Adelina não discorda. Estrutura-se um troca-troca e os quatro hum-hum...oquêi....tá bom é....” resume a manobra a nível de resolver em dois tempos casamentos mal resolvidos. “Sou de arrancar couro de farejar ouro, Princesa do Daomé” diz quem “faz mandinga deixa biruta, lelé da cuca, zuretão, ranzinza” embrenhando-se nos ancestrais africanos. “Dormir no teu colo é tornar a nascer violeta e azul, outro ser luz do querer” trata do sonho de ser feliz. Villegagnon, Praça Mauá, Mitterrand, Paquetá, flamboyant, voalá e çavá, padedê, dendê, peticomitê, faz uma barafunda da história com lugares divertindo-se com o gaulês num pagode em Cocotá.

O limite de Aldir não tem limites, entra em todas, mergulha no passado, na memória do que viu na vida, do que traduziu com seu poder de quem observou, entendeu e fez voar incontáveis versos que o povo canta.

Sentimos uma dor pungente de quem partiu num rabo de foguete. Choramos, chora a canção, chora a nossa pátria mãe gentil. E que sufoco! As nuvens no mata-borrão do céu. Façamos reverências mil pra noite do Brasil com tanta gente que já partiu. E levou Aldir

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