Allyson Mariano desafia a esquizofrenia para lançar um EP de sua banda e cantar com Nando Reis

Músico de Goiânia, diagnosticado com a doença aos 27 anos, criou tema de campanha para alertar e pedir compreensão com a doença; líder de um grupo de metal, o HardfloW, ele prepara um EP com faixas poderosas cantadas em inglês

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Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
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Allyson Mariano era muito jovem quando as vozes começaram a chegar: “Nem o inferno vai te querer”. “Se você morrer, vai ser bom pra todo mundo.” Eram delírios auditivos típicos dos portadores de esquizofrenia, mas não eram o pior. As vozes reais dos colegas de escola que o viam apático, com cacoetes e todo um comportamento peculiar que refletia algo que nem sua família sabia ainda do que se tratava podiam machucar mais. Ao se apaixonar pela primeira vez por uma colega de sala, declarou seu amor por meio de uma carta. Como resposta, a garota também escreveu uma carta, mas a fez passar por todos os alunos antes de chegar às mãos do destinatário: “Nunca vou ficar com ele porque ele nunca poderá saber o que é gostar”, escreveu sobre Allyson. Alunos do colégio passaram a usar a frase “vai se casar com o Allyson!” como se rogassem pragas e um professor, ao ser perguntado se portadores de doenças como a de Allyson poderiam ter uma vida normal, disse: “Poder pode, mas de que adianta? Qual autonomia ele vai ter?”.

Allyson Mariano, em sua casa, em Goiânia Foto: TULIO ALVES E IGOR ALVES

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As vozes que vinham de dentro e de fora faziam Allyson querer viver menos. Ao chegar da escola, mesmo tendo acabado de passar por pesadelos assim, ele sorria para os pais para poupá-los. Nos dias em que não suportava a pressão e o desgaste mental depois de horas debatendo mentalmente com as vozes que o atormentavam, agredia a si mesmo para não agredir ninguém. Apesar de começar a passar por tratamentos aos 10 anos, o diagnóstico fechado de esquizofrenia só veio aos 27. Começou, então, a busca pela medicação ideal e, depois de encontrá-la, os testes para se chegar à dosagem certa. Um antipsicótico chamado quetiapina chegou a ser ministrado com 800 miligramas diárias que, associado a outros dois, o dopava por até 18 horas seguidas. Ao se levantar e entender que teria pouco tempo de consciência antes que outros remédios o prostrassem, escrevia versos e compunha canções. E é nessa parte da história que surge a voz de Allyson.

Allyson passou a compor e a tocar em sua cidade, Goiânia. “A música se tornou o meu refúgio. Minha existência seria um erro sem ela”, ele conta. Mesmo pequenos trechos de trilhas sonoras de desenhos animados passavam a ilustrar seus dias depois que a madrinha, Marília Kanzog, a quem chama de sua “referência de vida”, o colocou diante de um piano. O som que o tocar de seus dedos nas teclas produziu abriu uma caixa de onde não saíam vozes, mas cores. Marília deu aulas ao afilhado e o ensinou a base de técnicas e percepção musical para que ele passasse a se desenvolver sozinho, mesmo quando as limitações cognitivas impusessem restrições. Aos 14 anos, nas janelas de tempo em que os remédios não agiam, ele escreveu sua primeira canção.

Um saltar nos anos leva Allyson a um estúdio de gravação. Aos 37 anos, em meio à pandemia, ele recebe um telefonema da empresa farmacêutica Janssen, da Johnson & Johnson, com um convite. Depois de pesquisarem por alguém que pudesse representar a fala de milhões de portadores de transtornos e doenças psíquicas, encontraram uma matéria sobre Allyson em um jornal de Goiânia. Eles queriam que ele criasse uma canção para uma campanha que chamasse a atenção para a importância de se identificar e tratar transtornos mentais, potencializados em tempos de isolamento social. Allyson faria a música e a empresa convidaria o cantor Nando Reis, dentre outras pessoas, para gravarem a música e um vídeo. Mesmo sem ter uma ligação direta com a música dos Titãs, Allyson ouviu o rock nacional dos anos 1980 antes de partir para sua composição. Criou assim algo na vibe do convidado e fez uma letra que fala delas, as vozes, com um arranjo que cresce em intensidade até chegar ao refrão: “Eu só quero pedir: ouçam nossas vozes / para entender / vencer o limite entre nós e vocês”.

Ouçam Nossas Vozes é o nome do single que Allyson Mariano criou para a campanha que pede respeito e tratamento aos portadores de transtornos como a esquizofrenia, os esquizofrênicos. Essa palavra ganhou um peso negativo e é largamente usada hoje, sobretudo no contexto político atual, para designar governantes desvairados, dirigentes sem caráter e delinquentes em geral. Um preconceito disseminado e altamente nocivo mesmo em meios cultos, como o de jornalistas, que não imaginam a dor que provocam em quem, de fato, sofre do mal e se vê estigmatizado. “Somos estereotipados e banalizados o tempo todo pela mídia”, diz Allyson. ‘Esquizofrenizar’ um criminoso de mau-caráter é ainda, em última análise, atenuar suas ações, dizer que seus atos se explicam por uma condição patológica da qual ele não tem culpa. Ou seja, está tudo errado quando se emprega a esquizofrenia como um adjetivo.

A campanha à qual Allyson se aliou existe para chamar a atenção para o quanto a esquizofrenia é uma doença a ser melhor compreendida. Crianças ainda sem diagnósticos são alijadas do convívio dos amigos, jovens se tornam pesos a serem isolados e muitos adultos acabam abandonados por suas famílias. Allyson tem limitações, clinicamente falando, mas seu talento é algo a se considerar mesmo fora das campanhas bem-intencionadas que trazem artistas conhecidos para a validarem. Nando Reis diz o seguinte: “A música é uma força vital para qualquer ser que caminhe sobre esse planeta que anda tão devastado”. Ele e muita gente que só ouviu o Allyson da campanha precisam saber também do cantor, compositor e líder da banda HardfloW.

O grupo de Allyson Mariano existe desde 2018, mas a inspiração para sua formação tem início em 2015, quando o músico descobriu que a mulher que ele diz ainda amar o deixou ao saber de sua esquizofrenia. A tristeza o jogou de volta à escuridão, mas lá, desta vez, existia a música. Ao piano, começou a trabalhar para compor e criar arranjos para suas canções ao mesmo tempo em que buscava músicos que estivessem dispostos a colocar seu repertório de pé. Ele tem hoje 65 canções em seu nome, quatro delas na reta final de produção para serem lançadas no EP The Many Face of... I (As Muitas Faces de... Mim). Seu quinteto é formado por Jean Rocha na guitarra, Danilo Almeida nos vocais, Mardonio Figueiredo no baixo e Matheus Cabral na bateria. E seu som fica entre o heavy metal e um hard rock compacto, bem trabalhado e melodioso. A reportagem ouviu duas das faixas, All The Truth e Tired of Being a Fool, músicas cheias de encrencas para os músicos resolverem. Jean faz um belo solo em Tired of a Being... e All The Truth tem um arranjo de teclas grandioso, um vocal nas alturas e, mais uma vez, um poderoso solo de guitarra.

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Depois de ouvir as músicas, o repórter precisa saber quais são as influências que levaram Allyson a constituir uma base sonora tão bem definida nesse território. E ele responde: “Scorpions (minha banda preferida), Deep Purple, Whitesnake e Journey... Está muito na cara, não tenho como fugir”. E nem teria motivos. Sua música é feita com pujança e personalidade.

Allyson fala com certa tristeza da namorada que o deixou ao saber de sua esquizofrenia. É para ela que ele faz suas músicas, assim como foi para ela que escreveu um livro de poesias, lançado em 2020, chamado Sobre Ela, Sobre Mim. Ele não sabe se as suas criações têm chegado à musa inspiradora, que também vive em Goiânia, a poucos quarteirões de sua casa. “Creio que sim, mas ela nunca se manifestou.” A essa altura, talvez, nem seja o mais importante. “Eu gostaria muito de deixar um legado artístico para as pessoas que sofrem de doenças como a minha.” Um pouco depois, diz a seguinte frase sobre o fato de ainda não ter superado o abandono. “Ainda gosto dela. Não consigo buscar em outras pessoas aqueles abraços.”

As frases de Allyson saem assim, com um poder poético espontâneo. Uma sensibilidade treinada pelos tantos anos de conversas consigo mesmo, tentando entender por que as vozes, quando não eram dos vocalistas do Scorpions, do Deep Purple e do Whitesnake, pareciam estar sempre contra a sua existência. Ainda não é fácil. Allyson Mariano se prepara com alguma antecedência para ter conversas como a que teve por telefone com o repórter e, com o tempo, criou um esquema mental baseado em um referência visual para desativar o circuito que o leva, em crises mais sérias, a visualizar criaturas grotescas sem forma definida. “Eu consigo sentir até mesmo a região do cérebro que está agindo.” Seu estímulo referencial nesses momentos é um ponto de luz. É por ele que Allyson desarma seus fantasmas, encontra o caminho de volta, senta-se ao piano da sala e começa a cantar.

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