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Álbum traz as melhores canções de Clara Nunes

Grandes intérpretes recriam o repertório da cantora, no álbum duplo Um Ser de Luz, apesar dos desencontros sobre o seu 60.º aniversário. Ouça Você Passa, Eu Acho Graça, na voz de Teresa Cristina

Por Agencia Estado
Atualização:

Confusão de festa errada: desde o fim do ano passado anunciavam-se homenagens e homenagens que seriam prestadas a Clara Nunes por ocasião de seus 60 anos, a serem comemorados no dia 8 de agosto deste ano, conforme consta da Enciclopédia da Música Brasileira - durante muito tempo a única fonte sistematizada de informações sobre nossa canção popular. A própria gravadora que teve Clara sobre contrato durante toda a carreira, a EMI, caiu no engodo e anunciou um disco contendo gravações raras e inéditas em CD da cantora. Foi quando o viúvo dela, o poeta e compositor Paulo César Pinheiro, resolveu pôr a boca no mundo. Aquele disco seria um desrespeito a Clara, disse ele. As tais faixas inéditas eram coisas do comecinho da vida artística, quando Clara ainda não era dona de seu repertório. Cantava o que a EMI mandava. Além do mais, contou Paulinho Pinheiro, Clara não estaria completando 60 anos agora. Havia-os completado em agosto do ano passado. A Enciclopédia, falha, organizada por Marcos Antônio Marcondes e editada pela primeira vez em 1977, com segunda edição 11 anos depois, sem correção dos erros e ainda com graves omissões, perpetuava a informação falsa. Muitas das homenagens foram canceladas. Mas a EMI, em remissão ainda não realizada, manteve a promessa de repor na praça, em versão digital, os 16 discos de Clara (lançados em CD num pacotaço, em 1997, de uma vez só e com tiragem reduzida). Não se falou mais do tal disco de falsas raridades. Outro belo tributo, idealizado por Paulão Sete Cordas, uma das mais importantes figuras do samba contemporâneo, também foi mantido e sai agora com chancela da gravadora carioca Deckdisc. Trata-se do duplo Um Ser de Luz, no qual vários grandes intérpretes, antigos e novos, recriam o repertório que Clara transformou em clássico. Ora, recriar o repertório de uma intérprete parece bobagem - e é, normalmente. Fulana de tal canta Elis Regina - Elis não era autora, e é difícil que alguém cante alguma peça de seu repertório melhor do que ela. O mesmo com Clara, que, até onde conste, não assinou autoria alguma. Mas Paulão lavrou o tento. Um Ser de Luz é um disco magnífico. Que tem a vantagem de confirmar o que quem é bom sujeito já sabe - ao lado de gente como Elton Medeiros, Cristina Buarque, Walter Alfaiate, Monarco, Dona Ivone Lara, Velha Guarda da Portela, ficam bonitos no filme os novíssimos Pedro Miranda, Teresa Cristina, Seu Jorge, Renato Braz, com o reforço das nem tão novas mas não muito conhecidas Rita Ribeiro, Mônica Salmaso, Mart´Nália, para falar de alguns que participam do tributo. Para lembrar: Clara Nunes nasceu em Paraopeba, Minas Gerais, filha de um violeiro e cantador de Folia de Reis, Mané Serrador. Ficou órfã ainda menina, foi para a capital mineira aos 16 anos, fez curso normal - para ser professora -, com auxílio financeiro dos irmãos e, em 1960, venceu a etapa mineira do concurso A Voz de Ouro do ABC, cantando a Serenata do Adeus letra e música de Vinicius de Moraes. A final do concurso foi em São Paulo. Clara ficou em terceiro lugar, cantando outra canção de dor-de-cotovelo, Só Adeus, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia. Morena belíssima, com sangue negro, índio e português em mistura de fórmula perdida, Clara começou no rádio. Mas a televisão logo se apaixonaria por ela. Depois do concurso, foi contratada pela Rádio Inconfidência, de Belo Horizonte. Comandou programa e pulou de lá, 18 meses depois, para a TV Itacolomi. Caminho natural, foi para o Rio em 1965 e assinou em seguida contrato com a EMI, na época chamada Odeon. O primeiro disco não era bom. Saiu em 1966. Chamava-se A Voz Adorável de Clara Nunes. Só dois anos depois Clara conseguiria firmar-se como cantora de samba, de afoxés, de pontos de umbanda, das coisas de negro e índio que desenham a personalidade musical brasileira. O primeiro sucesso veio, em 1968, com Você Passa e Eu Acho Graça, do mineiro de Miraí Ataulfo Alves em duvidosa (a imprensa da época tentou alertar o público) parceria com Carlos Imperial, um cara ruim de música mas bom de negócios, que trabalhava com a turma de Roberto Carlos. No duplo que agora a Deckdisc lança, quem canta Você Passa e Eu Acho Graça (e o nome de Imperial continua nos créditos) é Teresa Cristina, a mais influente das vozes da nova geração de cantoras do samba. Há um simbolismo aí, nada casual. Paulão, que também produziu o primeiro disco de Teresa Cristina, CD duplo no qual ela canta o repertório de Paulinho da Viola (lançado no ano passado pela mesma Deckdisc) sabe que dificilmente Teresa terá o sucesso que Clara teve. Os tempos são outros. Mas é preciso fazer alguma coisa, nem que o resultado circule em círculos restritos (como vem acontecendo com quase tudo o que se faz de bom em música, hoje em dia). E o que Paulão Sete Cordas fez foi juntar o que de mais belo o samba produziu entre os anos 60, quando Clara começou a gravar até o lançamento de seu último disco, Nação, que saiu pouco antes de sua morte, no dia 2 de maio de 1983. Clara cantou dos pontos do candomblé à revisão deles à luz da cultura urbana na música que deu título ao último trabalho, um tipo de enredo escrito por João Bosco e Aldir Blanc. Curiosamente - e deve haver outra simbologia, aí - foi uma das últimas parcerias da dupla, que logo em seguida se desfaria. É um riquíssimo painel, de 28 títulos, aberto, no disco 1, com A Deusa dos Orixás, de Romildo e Toninho, aqui na voz áspera e expressiva de Nilze Carvalho, e se fecha, muito justamente, com Um Ser de Luz, de Mauro Duarte, Paulo César Pinheiro e João Nogueira, interpretado por Tantinho da Mangueira vejam: Sabiá/ Que falta faz sua alegria/ Sem você/ Meu canto agora é só melancolia/ Canta, meu sabiá/ Voa, meu sabiá/ Adeus, meu sabiá/ Até um dia. Entre uma e outra estão Conto de Areia, A Força da Natureza, Ê, Baiana, Morena de Angola, Feira de Mangaio, Minha Missão, O Mar Serenou, Juízo Final, Portela na Avenida, Candongueiro, Canto das Três Raças, Alvorecer, Ijexá e mais, grande parte dos títulos lançados por ela, um bom número de músicas feitas para ela. Voe de volta o samba.

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