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Álbum 'A Love Supreme', de John Coltrane, será repassado em show

Biografia em HQ terá lançamento na Vila Madalena

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Aos 39 anos, John Coltrane já havia perseguido todos os anjos e demônios. Subiu nos alpes do bebop com Charlie Parker, enfrentou a evolução do hard bop com Cannonball Adderley e Art Blakey, viciou-se em heroína, saiu em carreira solo, viciou-se em álcool, voltou a tocar com Miles, contribuiu com os tremores de terra provocados pelo álbum Kind Of Blue, tocou os compassos ternários de My Favorite Things quando o jazz os evitava e, enfim, chocou os críticos com a desconstrução de tudo o que havia feito antes produzindo uma música chamada jocosamente de “anti-jazz”, ou “the new thing”, ou a “coisa” que ninguém sabia definir muito bem o que era. Seu sax soprava dentro e fora de todas as escalas até o dia em que Deus o chamou.

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Sozinho em seu quarto, ele anotava a inspiração que ouvia dentro de si por até 12 horas seguidas de estudos, dia após dia. Miles Davis o demitira uma vez por isso: “Cara, você precisa parar de tocar o tempo todo!”; “Não consigo!”; “Então está fora!”. Coltrane já estava longe.

Sua mulher, Alice, se lembraria do que ele disse quando desceu as escadas com a feição tranquila e serena, ao sair de uma internação de três dias em seu quarto: “Parecia Moisés descendo da montanha, foi lindo”, disse Coltrane, de olhos vidrados. “Ele desceu, e havia uma alegria, uma paz em seu rosto, uma tranquilidade.” Sua mulher quis saber mais, e ele contou: “Esta foi a primeira vez que me veio toda a música que eu gostaria de gravar. É como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo pronto”.

E saiu assim, em 1965, o álbum A Love Supreme. O resultado de uma obsessão espiritual, uma necessidade de Coltrane em elevar-se às forças superiores, ligar-se a um Deus que não era o das igrejas, mas do Universo, e fazer um disco para a história. Seu jazz saía das caixas harmônicas pré-formatadas do bebop de Charlie Parker para explorar o desconhecido. A agilidade e a respiração para alongar as frases não eram mais o foco. Coltrane queria se comunicar abrindo com seu sax um portal que o levaria a outra dimensão. Seus músicos já não eram acompanhantes, mas membros de uma espécie de fraternidade. Eram eles McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (contrabaixo) e Elvin Jones (bateria).

Apenas hoje o álbum considerado o único rival de Kind of Blue, de Miles Davis (do qual Coltrane também participa), será repassado na íntegra por músicos brasileiros, nesta sexta, 19, às 21h, no Sesc Pinheiros. O projeto Audições Históricas (que já fez o mesmo com o próprio Kind of Blue) tem a curadoria do guitarrista e professor de música Lupa Santiago. Ele fez a escalação dos músicos brasileiros que vão desbravar a peça de Coltrane: [1]Cássio Ferreira (sax), Bruno Migotto (contrabaixo), André Marques (piano) e Alex Buck (bateria). “[/1]São músicos que conhecem muito bem essa obra. Vai ser interessante vê-los tocar algo que está em suas formações desde o início”, diz Santiago. Ele dá uma dimensão do nível de dificuldade na execução: “[1]Muito provavelmente, em toda a história do jazz, esse é o álbum que mais exige dos músicos. [1]O nível técnico e de concentração envolvidos são altíssimos[/1]”[/1].

Coltrane é um exemplar raro dessa espécie dos criadores do jazz. Enquanto muitos passavam a vida lutando para desenvolver suas próprias linguagens, e sustentá-las discos após disco, ele simplesmente as abandonava quando sentia que já tinha o domínio daquele território. Se tivesse se aquietado em Giant Steps, em 1960, quando apontou para um conceito mais livre de improvisos e de progressões harmônicas, já estaria na história. Mas não. Álbuns lançados mesmo próximos a Love Supreme, como Sun Ship, do mesmo ano, o mostra jogando fora todas as vitórias de seus discursos anteriores para reinventar-se na linguagem mais radical. Ele parecia ter sempre algo mais a dizer.

Seu sax tinha voz, e não só no sentido musical. Se o usava para alçar voos ao céu de suas crenças ecumênicas, tocando como se estivesse em um terreiro africano, o empunha também como metralhadora na terra das opressões. Era um raro caso de instrumentista (e não um cantor) engajado em questões políticas e sociais. Alabama, um tema de 1963 lançado no disco Live at Birdland, é sobre o ataque do grupo racista Ku Klux Klan a uma Igreja Batista em Birmingham, no Alabama, que provocou a morte de quatro garotas.[1][2][/2][/1] Mesmo sem letras, sua mensagem chegava ao destino.

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O mundo explodia em ódio enquanto seu “amor supremo” chegava às lojas para se tornar o disco mais vendido de sua carreira. O universo parecia precisar daquela oração. Assassinavam o ativista Malcolm X e Martin Luther King liderava a Marcha sobre o Alabama, saindo de Selma. Coltrane, um músico de jazz, fazia parte da resistência em discos como [1]Olatunji Concert (1967), Live in Japan (1966) e Ascension (1965)[/1].

Quadrinhos. Curiosamente, no mesmo dia em que o time de Lupa Santiago sobe ao palco do Sesc Pinheiros para repassar as A Love Supreme, um livro que narra a vida do jazzista em quadrinhos será lançado, a partir das 18h, na loja [1]Patuá Discos (Rua Fidalga, 516, Vila Madalena). O DJ [1]RamiroZ e o saxofonista Thiago França[/1] farão a discotecagem. A obra Coltrane, de autoria do italiano Paolo Parisi, lançado pela editora Veneta, segue o conceito do álbum: divide suas histórias em quatro partes e não tem uma narrativa linear.[/1] “A ideia foi criar uma história não sequencial em todo o livro, algo como um solo de free jazz. Uma seleção de pequenos fragmentos da vida pessoal, da carreira e da música de Trane. Eu posso gastar centenas de linhas sobre o sentido de uma história, mas é muito legal quando o leitor constrói o seu próprio sentido”, disse Parisi ao site Radiola Urbana, ligado à loja de discos.[1][3][/3][1]AUDIÇÕES HISTÓRICAS Sesc Pinheiros. Teatro Paulo Autran. Rua Paes Leme, 195, tel. 3095-9400. Sexta (19), às 21h. R$ 30