Abbado mostra solidez em apresentação precisa

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Por Agencia Estado
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No equilíbrio perfeito entre precisão e emoção interiorizada com que conduziu o longo Adagio final, culminou a interpretação dada por Claudio Abbado à Sinfonia nº 9 em ré maior, de Gustav Mahler, à frente da Filarmônica de Berlim. Foi ali, mais do que na visão analítica do Andante commodo inicial, ou na forma como o regente explorou os detalhes irônicos e parodísticos dos movimentos centrais - o final do Rondo-Burleske realizado de maneira absolutamente eletrizante -, que transpareceu o sólido senso de forma de Abbado. O arco gigantesco desse movimento final, de uma nobreza e de um estoicismo brucknerianos, mas também perpassado às vezes por passagens agitadas, cheias de paixão, construiu-se com extrema clareza. E evoluiu de maneira tão impressionante para as últimas frases, em que a sinfonia morre literalmente em pianíssimos impalpáveis, que um longo silêncio se seguiu ao momento em que a orquestra se calou - como se o público hesitasse em romper, com o aplauso, o instante de recolhimento produzido por esta peça que é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a morte e um cântico de amor à vida, que se fecha numa resignada visão da eternidade. Nesse último movimento, mais do que em qualquer outro, o público pôde sentir o que é a celebrada sonoridade da Filarmônica de Berlim, na opulência das cordas - mas também na segurança com que elas graduam efeitos de dinâmica de uma extraordinária riqueza -; na infalível precisão dos sopros, na naturalidade da harmonização entre os diversos naipes. Seria fácil, com músicos de tantos recursos, ceder à tentação do virtuosismo puro, sobretudo num movimento de fortes contrastes como o segundo, em que, a um tema lírico reminiscente da sonata Les Adieux de Beethoven, responde uma valsa truculenta, que parece anunciar o Ochs do Cavaleiro da Rosa ou, mais adiante, a trágica cena do baile na taverna, do Wozzeck de Berg. Mas, a um maestro como Claudio Abbado, o que interessa é a visão de conjunto, que dá uma arquitetura lógica e organizada à mais árdua das sinfonias de Mahler, cujos quatro movimentos em tonalidades contrastantes e com uma disposição de andamentos insólita - dois enormes tempos lentos, de atmosfera muito intensa, enquadrando dois movimentos rápidos, de tom irônico - sempre desafiou os analistas, e exige do ouvinte enorme concentração. Ele faz perfeitamente perceber que o Adagio retoma, depois do parêntese representado pelos turbulentos movimentos centrais, o final hesitante, inconcluso do Andante commodo inicial, que opta pelo silêncio mais do que pela resolução. Esse primeiro movimento, em especial, do qual Alban Berg dizia que era a página mais extraordinária escrita por Mahler, é extremamente difícil. A substância temática dessa ampla forma de sonata está o tempo todo em processo tão fluido de metamorfose, mais por procedimentos de variação do que pelas costumeiras técnicas de desenvolvimento, que é muito fácil dar-lhe um caráter fragmentado, descosido. Mas a sinfonia não corre esse risco nas mãos de um regente como Abbado que, sem esquecer a emoção de que está impregnada essa afirmação de amor à vida, no momento mesmo em que o compositor pressente a ameaça da morte rondando à sua volta, faz uma leitura lúcida, clara, das diversas estruturas de que Mahler lança mão, simultaneamente, para construir essa marcha fúnebre cheia de explosões apaixonadas. Fazendo a síntese da linguagem das sinfonias anteriores, mas também antecipando os elementos de uma linguagem futura - que a morte não deixaria se desenvolver -, "pondo em relação", como escreve Marc Vignal, "o caos e a organização, o amorfo e o dinâmico, o silêncio e o grito, a morte e a vida", esse primeiro movimento da "Nona" de Mahler se constrói superpondo técnicas: a forma de sonata geral, o processo de variação, a forma do rondó (na maneira como o tema central, em ré maior, retorna periodicamente), ou a irrupção do estilo concertante nas diversas intervenções dos solistas, de grande complexidade. Foi extraordinária a forma como Abbado unificou todos esses elementos contrastantes, na primeira apresentação da Filarmônica de Berlim no Teatro Municipal. Em especial no centro do movimento, no instante em que as forças antagonistas chocam-se com violência, naquilo que Alban Berg, em sua análise da sinfonia, dizia ser a passagem anunciadora da morte - trecho que, aliás, numa anotação à margem da partitura, Mahler pede que seja "como um pesado cortejo fúnebre". O desenvolvimento subseqüente decompõe-se em solos de extrema complexidade, superpondo frases de caráter improvisatório, das flautas, da trompa, as cordas graves, exigindo a mão firme do regente - como o John Barbirolli da grande gravação de 1964, com essa mesma formação berlinense - para que ele mantenha a sua coerência. Foi o que se assistiu, segunda-feira, na "Nona" regida por Claudio Abbado. Nas armadilhas do primeiro movimento, que ele deslindou de forma límpida; nos brilhantes achados dos tempos intermediários; e sobretudo na profundidade do movimento final, Abbado ofereceu ao público presente no Teatro Municipal uma experiência estética tão intensa, que se explica a longa hesitação do público em romper, com o aplauso, a mágica criada pela sua execução.

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