18 de novembro de 2013 | 20h31
A interpretação é a atualização sonora de uma obra musical escrita sob a forma de uma partitura, rezam os manuais escolásticos. Eles costumam acrescentar que o conceito de interpretação opõe-se ao de improvisação. Certo? Nem sempre. A partitura não é tudo. Há sempre espaço para o improviso. Mas há momentos nos quais toma conta da cena a atmosfera de improviso, um certo ar de que a música está se criando e toma forma ali, no instante em que a assistimos. É raro, raríssimo, mas acontece, mesmo quando sabemos que se trata de música escrita na pauta e em que há só um diminuto espaço para pequenos improvisos na ornamentação, por exemplo.
É o que provou com genialidade a contralto francesa Nathalie Stutzmann no final da tarde de domingo, na Sala São Paulo, em trechos de óperas de Antonio Vivaldi. Ela bateu o suingante gingado barroco com o pé, regeu os seis músicos – o quarteto de cordas e o contrabaixista Alexandre Rosa, da Osesp, e o cravista Alessandro Santoro – e cantou divinamente.
Regeu talvez não seja a palavra certa. Já quando entrou caminhando no palco e os músicos tocavam a introdução instrumental do Ritornello da ópera Il Giustino, de Vivaldi, aconteceu uma transfiguração do espaço, dos sons e até em nós, espectadores. Foi uma “trip” sonora e visual encantatória: mergulhamos todos no frenesi do barroco, transportamo-nos para o Teatro Sant’Angelo em Veneza no século 18. De repente, os happenings delirantes magistralmente descritos por Alejo Carpentier em seu maravilhoso Sagração da Primavera aconteceram ali, diante de nossos olhos e ouvidos.
O timbre poderoso e escuro, porém aveludado, dos graves; o brilho intenso dos agudos – tudo isso está presente na magnífica voz de Nathalie. Domínio, que se completou com os músicos que a rodearam. Cada frase com uma dinâmica específica esculpida no ar por sua voz; uma dinâmica que se espalhava via suas mãos e o corpo para os músicos; estes, em transe, seguiam-na com uma precisão, urgência e comprometimentos raramente vistos naquela Sala.
O concerto, aliás, já começou em temperatura elevada. O quarteto Osesp amadurece a olhos vistos. A integração entre Baldini, Graton, Pas e Gramsch é excepcional. Eles foram muito bem no quarteto de cordas de Verdi. Obra que reflete todo o saber de uma maturidade gloriosa do mestre lírico – a de quem sabe que o bonito também pode ser sedutoramente simples.
Mas só com Nathalie no palco é que se deu a transfiguração. Aquela que só os artistas de exceção conseguem imprimir a quem compartilha o palco com eles. Nathalie iluminou-nos a todos, músicos e público, por 25 minutos, em duas entradas.
Totalmente dispensável o truque de enxertar dois trechos do quarteto de cordas no. 3 de Philip Glass com os Vivaldi de Nathalie. Glass ficou ainda mais chato do que já é.
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