A voz, antes e depois de Severino Filho

Morto aos 88 anos, líder do conjunto Os Cariocas leva consigo a harmonia dos grandes grupos vocais

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Por Julio Maria
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Foi por alguns minutos que o pulmão de Severino Filho dispensou o oxigênio que as enfermeiras do leito 303 lhe colocaram pelos tubos. Ele já estava sob os cuidados do Hospital Quinta D’Or, na zona norte do Rio, desde o dia 18 de janeiro, tentando se livrar de uma trombose pulmonar nada fácil para um homem de 88 anos. Ao abrir os olhos e ver os três outros Cariocas a seu lado, sentiu o momento: “Vamos ensaiar”. Um deles ligou o celular para que ele ouvisse o tom em mi bemol maior de Ela É Carioca e Severa atacou, com a voz que lhe restava, a canção para a qual fez, um dia, um dos mais belos arranjos da música brasileira. Cantou sua parte segurando o falsete mas parou antes do fim, cansado e satisfeito, como se apenas checasse a beleza de sua cria. Estava tudo bem. Severino de Araújo Silva Filho morreu às 8h30 de terça, 1.º de março, alguns dias depois de seu último ensaio no quarto do hospital e sem lamentar-se uma única vez da sorte, ciente de que já fazia parte da história.

Severino (à esquerda) com a formação antiga do grupo Os Cariocas na TV Cultura Foto: Divulgação

Sua partida se dá quando Os Cariocas completam 70 anos de trabalhos, iniciados em 6 de fevereiro de 1946 com um contrato assinado com a Rádio Nacional. Severa, como era chamado, não vai ver dois projetos que dariam um pouco mais da dimensão de seu nome: um álbum que Os Cariocas iriam gravar apenas com músicas dos anos 1940, quando tudo começou, e um documentário que sua filha, a atriz Lucia Veríssimo, faz há quase dois anos colhendo depoimentos de 60 artistas que falam de Severa de joelhos dobrados, como Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Djavan, João Donato e Cauby Peixoto (leia mais em destaque). “Antes de mais nada, eu quero dizer uma coisa”, diz Milton olhando para a câmera de Lucia: “Eu imito o seu pai”. Severino herdou o bastão do irmão Ismael Netto, que morreu em 1956 depois de colocar Os Cariocas na pista de decolagem. Seus arranjos pré-bossa nova emitiram os primeiros sinais da modernização da música brasileira. Ao abrir as vozes, envenenava arranjos com saltos e intervalos que saíam das previsíveis terças e quintas usadas por conjuntos tradicionais de época como Bando da Lua (de Carmem Miranda), Os Anjos do Inferno e Quatro Ases e um Coringa. “É por meio da harmonia que ele determina a modernidade na música brasileira”, diz o pesquisador Zuza Homem de Mello, que fala também do falsete no agudo quase inatingível que Severa criou e patenteou: “Isso não havia, e se tornou sua marca. Por isso, digo que, agora, acabou de vez. Os Cariocas não existem sem Severino Filho”. A cantora Cibele Codonho lembra de perceber a obsessão de Severa por criar novos arranjos para as mesmas músicas. Depois de ouvir uma Wave mais modernizada, ela quis saber do cantor o que o levava a mexer tantas vezes em canções que já pareciam definitivas. “Nunca podemos parar no tempo”, respondia Severino. “Ele e o irmão trouxeram a dissonância para a harmonia vocal. Nunca perderam tempo com lugar-comum”, diz Cibele. “Severa criava os arranjos mais cabeludos que você pode imaginar”, diz Eloi Vicente, um dos integrantes da formação atual. “Cantar aquilo é como andar por um trapézio sem rede de segurança.” Quando era responsável pela sonorização dos programas de auditório da TV Record, Zuza Homem de Mello sorria e transpirava ao mesmo tempo ao saber que Os Cariocas seriam atração. Microfonar o grupo era um desafio da época que nem sua experiência em estúdios nos Estados Unidos ajudava a amenizar. “Imagina que eles cantavam abrindo vozes e tocavam baixo, bateria, violão e piano ao mesmo tempo. Eram oito microfones! Eu montava uma operação de guerra feliz da vida porque iria ouvi-los.” Os Cariocas escutaram por anos a história de que tomaram todas suas ideias, ou boa parte delas, do grupo vocal norte-americano Hi-Lo’s. De fato, o pensamento parece o mesmo nas harmonias de ambos, com direito a falsete reforçado na ponta e caminhos acidentados que requerem bem mais do que bom ouvido aos cantores que pisarem naquele território. Mas um detalhe definitivo é colocado pelo próprio Severa à filha Lucia durante seus depoimentos para o documentário: os Hi-Lo’s vieram apenas em 1953, quando Os Cariocas já tinham cinco anos de carteira assinada. Mais do que isso. Segundo Severino, um dos integrantes do Hi-Lo’s contou que o grupo usava como inspiração o que os brasileiros faziam com os clássicos da bossa nova. Se alguém copiou alguém, portanto, não foram Os Cariocas. Severa não foi também apenas um arranjador e intérprete, como muitos ainda acreditam. Mesmo a filha Lucia não conhecia a história de suas criações para as primeiras novelas produzidas pela TV Globo, no início dos anos 1960. Homem de esquerda, cheio de contestação, Severino Filho se recolheu durante um período da ditadura, trocando os palcos pelos estúdios. Quem conta episódios desta época para o documentário de Lucia é o ex-diretor da Globo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Boni. “Severino compôs várias trilhas sonoras para as primeiras novelas da Globo. Cada personagem tinha um tema.” Lucia se surpreendeu quando ouviu. “Meu pai jamais me contou isso. Ele era e morreu sendo um funcionário da música.” Ao saber que Severa passaria por horas difíceis no leito 303 do Hospital Quinta D’Or, Lucia baixou em um iPod todas as músicas que tinham o poder de tirá-lo daquela cama. Glenn Miller, Tommy Dorsey, João Gilberto, Elis Regina, Milton Nascimento, Frank Sinatra e toda a obra dos Cariocas eram colocados em seus ouvidos. Mesmo nas piores dores, jamais reclamou. A música tocava e ele apenas erguia a mão direita para reger sua orquestra imaginária.

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