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A reinvenção de um fenômeno chamado Guilherme Arantes

Quase 40 anos depois de lançar seu primeiro disco, um dos maiores hitmakers do País tem sua obra valorizada

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Por Julio Maria
Atualização:

Os cantores engajados da MPB dos anos 70 para os 80 não gostavam de Guilherme Arantes. Soava cafona, superficial, um extraterrestre. Os críticos da MPB não gostavam de Guilherme Arantes. A poesia vinha direta demais, com metáfora de menos, alienada das conjunturas do final dos anos de chumbo. A mulher de Guilherme Arantes não ia muito com a cara de Guilherme Arantes. Como seu homem podia ouvir Egberto Gismonti em casa e cantar 'Lindo Balão Azul' na TV?.

Guilherme Arantes na casa Terra da Garoa Foto: Marcio Fernandes

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Quase 40 anos depois, Mano Brown, vocalista dos Racionais, liderança linha dura do rap paulista, idolatra Guilherme Arantes. Acaba de convidá-lo para comporem juntos uma música para seu próximo disco. Os jovens da MPB indie o têm como referência. O grupo Filarmônica de Pasárgada, além de já ter gravado em seu estúdio, na Bahia, contou com sua presença em um show no Auditório Ibirapuera. Os universitários o ouvem nas baladas e os críticos revisitam sua discografia referindo-se a ele como um melodista e hitmaker dos mais importantes.

Afinal, o que o tempo fez com Guilherme Arantes além de lhe arrancar os cachos? Antes de um show na casa Terra da Garoa, no centro de São Paulo, o cantor recebeu o Estado no camarim para falar sobre este e assuntos mais, digamos, sinistros.

Alguma explicação para o que houve com você nos últimos anos?

Eu tenho 61 anos e, no ano passado, lancei um disco ('Condição Humana') que me recolocou na imprensa e na internet. Chegar aqui como sucesso de crítica, sendo bem avaliado por uma (revista) 'Rolling Stone', foi uma vitória retumbante. As pessoas passaram a reler o meu acervo antigo com outros olhos.

Mas seu disco não teve a mesma repercussão pop, como os álbuns dos anos 80.

O sucesso comercial não é mais possível. O crossover não é mais viável. Até os anos 70, tínhamos uma elite urbana, universitária, do padrão Vinicius, Chico Buarque, ou Clube da Esquina, de classe media e urbana, fazendo um movimento que atingia todas as camadas da sociedade. Um exemplo típico é 'Construção', do Chico Buarque. Além de ser uma grande composição, ele fazia esse crossover, tocando na favela e na classe alta. Hoje, as comunidades das periferias têm suas linguagens, seus estúdios, seus rappers, o pagode e o sertanejo. Criaram suas próprias linguagens. Elas não aceitam mais que a classe média alta e culta dite a moda, diga o que devem ouvir. A questão é social. Aquele Guilherme Arantes que conseguia ir ao programa Silvio Santos, que era capa da revista Contigo e que tinha pôsteres nos salões de beleza não é mais possível. Eu conseguia ter música gravada pela Elis Regina e pela Bethânia e ao mesmo tempo cantava no auditório do Chacrinha.

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O que houve com o hit? Ele também acabou?

As rádios estão segmentadas. Nos anos 80, quando tínhamos 24 emissoras idênticas na FM, você girava o botão e ouvia músicas onipresentes. O megahit de hoje, que seria de Michel Teló, por exemplo, deve estourar primeiro nas camadas populares e ir subindo. A Valeska Popozuda chegou a ser tocada nos bailes da Marinha e da Aeronáutica, nas festas de formatura do Ministério Público, com promotoras dançando o 'Beijinho do Ombro'. Esse contágio é mais provável quando as classes mais cultas o elegem, um movimento de baixo para cima. Mas o reverso é impossível. É assim também porque tivemos no Brasil uma inclusão social econômica, mas não educacional. As pessoas escrevem ainda muito mal, não existe um culto ao texto. O fato é que, nesses últimos anos, houve uma inclusão gigantesca do número de ouvintes, participantes no mercado, que ditam a moda pelas suas preferência, e eles são muito mais numerosos do que a classe média culta.

Como foi sua aproximação com Mano Brown, dos Racionais?

Estamos tateando uma parceria. O Brown quer muito se aventurar na música mais melódica, entrar na soul music. Senti que ele quer passar uma angústia, uma coisa mais existencial nas músicas, que já é inerente a ele, mas ele quer sair da armadilha do rap. Aquele ambiente depende de uma revolta, de uma energia explosiva. Ele é hoje uma pessoa bem sucedida, e quer tornar coerente e adocicar mais a linguagem para o amor, que ele acha que é mais cortante do que o discurso. Se você chegar ao choro das pessoas, vai cortar mais do que o discurso, que leva a uma revolta.

O livro 'Pavões Misteriosos', de André Barcinski, conta que você invejava o Zé Ramalho porque ele era feio. Sério isso?

A beleza física joga desconfiança sobre o talento. Aqueles anos de repressão ideológica, eram anos de luta. O arquétipo de sucesso naqueles anos, por exemplo, era o Gonzaguinha. Vinha com uma carga de sofrimento, de comunidade, ele era amargo por excelência. Quando ele rasgou o coração e fez canções de amor, virou um grande hitmaker. Eu tinha uma imagem de menino limpinho, de bom filho. Eu falava muito com a Elis sobre isso.

E você era mesmo o menino limpinho?

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Eu era aquilo mesmo.

Você não usou drogas com a Elis Regina? Muita gente ainda pensa isso.

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Usei cocaína no final dos anos 80, mas não com Elis, pelo contrário. Eu nunca vi Elis usar drogas. A morte dela foi uma surpresa para mim. Eu havia me casado com minha segunda mulher, estava em outra energia. E nos preservamos muito, minha mulher estava grávida. Não queríamos embarcar na loucura.

Seus hits nasceram em alguma condição especial?

Eu passei por alguns fenômenos paranormais na minha adolescência. Aos 12 anos, caí de um muro de seis metros de altura na casa da minha mãe e fiquei tetraplégico por duas horas. Foi algo paranormal. Depois desse tempo, levantei e saí andando. Foi como um pacto.

Ninguém viu você cair?

Não, eu estava sozinho. E quando estava sem os movimentos, senti uma paz, uma coisa estranha, até que os movimentos começaram a voltar. Anos depois, fui a um terreiro na Bahia e um pai-de-santo disse que eu deveria fazer uma música para Mamãe Oxum. Esses dois episódios ficaram reservados na minha vida. Quando o produtor Marco Mazzola pediu para mim uma música que seria gravada pelo Ney Matogrosso, fui pra casa e fiz 'Planeta Água' em 15 minutos. Foi quase psicografada.

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Como os músicos da época viam você? 

Eu era ridicularizado por meus amigos quando comecei a fazer programas de auditório, me tornei uma figura duvidosa até para a minha mulher.

Sua mulher?

Sim. O grande ídolo dela era o Beto Guedes. E ela estava com o pé atrás com minha carreira, com o que eu haviame transformado. Não era bem com aquilo que ela gostaria de ter se casado. Eu era capaz de ir além, gostava de Egberto Gismonti. Dentro de casa tocava Beto Guedes o dia todo, meus colegas iam para lá tomar cerveja ouvindo os discos dele. Eu era um nada para eles. Um dia, fui com ela para Minas Geraise fomos conhecer o Beto, o Lô Borges e o Ronaldo Bastos. Quando chegamos lá, eles se referiram a mim como um ídolo. Minha mulher disse que foi a maior decepção de sua vida.

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