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A herança portuguesa em 12 CDs

A aventura portuguesa na música está registrada em 12 CDs da coleção A Viagem dos Sons, organizada pelo etnomusicólogo, radialista e pesquisador musical português José Moças, que fala ao Estadao.com.br

Por Agencia Estado
Atualização:

Quando os portugueses saíram em busca de novas terras e novas riquezas, no século 15, levaram para o mundo sua língua e sua música, expressões sólidas de uma das culturas mais importantes da época. No contato com novos povos, a música teve papel importante, num processo de permuta que envolvia riquezas mais objetivas. Mais do que qualquer outro valor, foi a música que se combinou com as expressões locais para criar novas sonoridades, novos horizontes sonoros. Esta aventura está documentada nos 12 CDs da coleção A Viagem dos Sons, organizada pelo etnomusicólogo, radialista e pesquisador musical português José Moças. A primeira semente da obra foi um CD registrando a música de Goa, encomendado a Moças pela Universidade de Aveiro, em 1995. Outros parceiros tornaram possível o mapeamento da música de influência portuguesa entre os lusófonos: Sri Lanka, Damão, Diu, Cochin, Korlai, Malaca, Sumatra, Macau, Timor, Moçambique, São Tomé, Cabo Verde e Brasil. A importância da música portuguesa para a brasileira é sempre subavaliada. Quando se fala em samba, fala-se em música negra; por certo, ritmicamente, é negra; sua sintaxe, no entanto é portuguesa até a medula - considera-se aqui o samba urbano do Rio, que dá o molde para os outros que são feitos no País. Imagine-se que, no período das grandes navegações, a cultura portuguesa - com ela, sua música - espalhou-se por todos os cantos do mundo, combinando-se com as músicas locais para criar novas expressões regionais. A inestimável riqueza desse legado é o que se mapeia nos discos da coleção. Cada disco é acompanhado de libreto com textos, em português e inglês, que apresentam a história, narram a chegada dos portugueses e analisam cada gênero musical, estudando seus elementos de composição. Em entrevista José Moças conta como lhe veio a idéia do trabalho e lamenta que não tenha dado certo a idéia de dedicar seis CDs ao Brasil - os parceiros brasileiros roeram a corda. Estadao.com.br - Quando e como nasceu a idéia de criar A Viagem dos Sons? José Moças - Em 1995, a Fundação Oriente, por sugestão da etnomusicóloga Susana Sardo, da Universidade de Aveiro, convidou-me a produzir um CD com música de Goa, interpretada pelo grupo Gavana. A escolha recaiu na Tradisom porque eu estava em Macau e a Fundação gostou das edições que, até então, eu tinha feito. Depois, quis o destino que em 8/2/1996 cruzasse comigo o professor David Keneth Jackson, da Universidade de Yale (USA), que foi a Macau dar uma conferência sobre os seus trabalhos nas comunidades indo-portuguesas de Damão, Diu, Cochin e Korlai (Índia), bem como no antigo Ceilão (Sri Lanka). Nessa conferência, ele me revelou a existência de gravações que, em alguns casos, muito dificilmente se poderiam repetir (a guerra tamil tornou algumas regiões inacessíveis). Obtive a sua concordância em colaborar comigo, tendo em vista a possível edição em CD dessas gravações. Estava assim dado o primeiro passo para a edição de A Viagem dos Sons. De que forma foi inicialmente pensada e como ficou, afinal? Ao constatar que havia a possibilidade de fazer quatro CDs (1 - Goa, 2 e 3 - Sri Lanka e 4 - Damão), achei que deveria aproveitar o fato de, em 1998, se realizar em Portugal a Exposição Mundial, que coincidia com as comemorações dos 500 anos da viagem de Vasco da Gama à Índia, para elaborar um projeto, ambicioso é certo, que pudesse ilustrar de que forma os contextos e as pessoas que adotaram as músicas levadas pelos portugueses, ou através deles, devolvem à história novas sonoridades expressivas, que entretanto adquiriram autonomia e vitalidade, gerando outros universos sonoros. Foi assim que chegamos a uma coleção com 12 CDs, abrangendo Goa, Damão, Diu, Sri Lanka, Malaca, Sumatra, Macau, Timor, Moçambique, São Tomé, Cabo Verde e Brasil. Como evoluiu a pesquisa? Como se deu a escolha dos pesquisadores locais (curadores, talvez)? Na maioria dos casos, a pesquisa já havia sido realizada e estava, como se costuma dizer, dormindo nas gavetas. Felizmente, eu tinha uma noção exata daquilo que existia e do que podia ser "encomendado". Como membro do International Council for Traditional Music (ICTM) e da Society for Ethnomusicology (SEM), eu sabia quem tinha investigado nos locais por onde os portugueses haviam passado. Mas tinha consciência que não seria fácil, porque o tipo de edição que eu projetava exigia um esforço financeiro muito grande e nem sempre conseguimos obter o apoio das instituições, o que felizmente não aconteceu neste caso. Havia, no entanto, que proceder a convites para se efetuar novas pesquisas, o que aconteceu para Macau, Timor, Cabo Verde e Brasil. Quem os teria indicado, que orientação lhes foi dada? A escolha dos pesquisadores foi feita por mim, com base nos meus conhecimentos, como já disse, e também com a preciosa ajuda da coordenadora científica do projeto, Susana Sardo. Os pesquisadores envolvidos são todos acadêmicos de reconhecido mérito. Tive apenas de deixar claro a todos que, objetivamente, queríamos elaborar livretos para os discos com bastante profundidade, ou seja, queríamos um enquadramento histórico, uma análise abrangente sobre a música desse local, uma sinopse de cada faixa e todas as letras das canções. Queríamos fazer um trabalho, ao mesmo tempo, de grande rigor científico e ilustrativo de um patrimônio musical ímpar, de que, como portugueses, nos sentíssemos orgulhosos. No caso do Brasil, uma região foi selecionada, entre muitas que poderiam também ser exemplares. Por que uma região e não outra? Deu-se coisa semelhante em outros países? No caso do Brasil, a grande dificuldade era escolher. E optamos por convidar um pesquisador, indicado pela coordenadora científica, que conhecia bem o seu trabalho. E, de fato, o professor Samuel Araújo, que atualmente dirige o Centro de Pesquisas Folclóricas da UFRJ (foi nomeado responsável pela organização do Congresso Mundial do ICTM, em julho de 2001, no Rio) foi a escolha acertada, porque o disco sobre o Cavalo Marinho da Paraíba é excelente. E foi asim que procedemos sempre ou seja, convidando determinado pesquisador, porque já sabíamos antecipadamente onde ele tinha estado e o que tinha investigado. Considerada a questão anterior, que abrangência você julga ter o trabalho? Se levarmos em conta que a coleção tem 12 CDs e abrange 10 países diferentes, temos de nos dar por satisfeitos. Há ainda que ressaltar que existia uma condicionante importante ao realizarmos as nossas escolhas: o facto de a coleção ter de estar pronta em maio de 1998, data de abertura da Exposição Mundial de Lisboa. Mas pensamos sinceramente que os 12 CDs editados são uma amostra muito significativa para o objetivo a que nos propomos: a descoberta dos itinerários dos sons, mostrar que sons viajaram e como os portugueses levaram consigo não apenas a sua música mas também, ao promover a viagem dos outros, diferentes tradições musicais. Poderá ele vir a ser complementado, com novos registros sonoros? Existia um outro projeto, dentro do mesmo espírito editorial, dedicado exclusivamente ao Brasil, e que deveria ser editado este ano, por ocasião das comemorações dos 500 anos. Seria uma parceria entre a Tradisom e o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (Museu Edison Carneiro), do Rio. Os custos seriam divididos em partes iguais por Portugal e Brasil. Eu cheguei a garantir os apoios em Portugal (Ministério da Cultura e Instituto Camões), mas tudo falhou no que diz respeito às instituições brasileiras. Foi uma pena, porque a coleção (de 6 CDs) prometia ser um trabalho interessantíssimo. Posso até mesmo dar-lhe uma idéia da sua composição, na expectativa de que ainda venha a ser um dia realizado. Quem financiou o trabalho? No Brasil, iniciativas desse tipo (ainda que não conheça nenhuma desse porte) são sempre financiadas pela iniciativa privada... O projeto foi financiado por várias instituições, mas o grande apoio veio da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos, e gostaria de salientar o entusiasmo que desde a primeira hora foi manifestado pelo então presidente, professor António Hespanha, bem como por Jorge Murteira, também da CNCDP, que nos ajudou a resolver as dificuldades que sempre surgem. Além da CNCDP, contei ainda com o apoio do Ministério da Cultura da Fundação Gulbenkian, Fundação Oriente, Instituto Português do Oriente e Rádio Nova. Quanto tempo de trabalho de campo foi gasto? E quanto dinheiro? Desde que tivemos a certeza de que o projeto ia ser realizado até à sua apresentação passamos dois anos dedicados exclusivamente a ele. Tivemos algumas dificuldades, mas tenho de dizer que foi a nossa persistência pela integridade da idéia o que levou ao resultado final, que agora orgulhosamente podemos mostrar. Este projeto custou na sua globalidade perto de US$ 200 mil. Como editamos 3 mil coleções, foi um excelente investimento pra as instituições que nos apoiaram e da própria Tradisom. Conversei há algum tempo com o líder do grupo Madredeus, que me falou do interesse crescente, internacional, pela música portuguesa, ou, mais precisamente, pelas palavras da música portuguesa. Acontece o mesmo com uma certa classe (a representada pelos autores populares cultos, como Chico Buarque ou Milton Nascimento) da música brasileira. Você pensou nisso? O que pensa disso? É comum dizer-se que a música é a linguagem mais universal. É evidente que existe hoje maior curiosidade pela música de expressão portuguesa. Eu penso que os músicos brasileiros supreenderam o mundo nos anos 60, com o samba e a bossa nova. Milton, Gil, Caetano, Bethânia, Chico Buarque, Jorge Ben, etc., passaram a ser conhecidos em todo o lado. Hoje em dia um fenômeno semelhante ocorre com alguns nomes da música portuguesa, de que os Madredeus, Dulce Pontes e muito recentemente os Gaiteiros de Lisboa são talvez os mais conhecidos. E existe o fado, esse eterno cartão de visita, que praticamente toda a gente reconhece por esse mundo fora. O grande problema continuará a ser sempre a agressividade da música estrangeira e a sua capacidade de penetração em todos os mercados. Como é que a música portuguesa pode ser conhecida no Brasil (e sabemos que não é) quando os discos têm de pagar um imposto de 67% para entrar no seu país? Diz-se que trabalhos como A Viagem dos Sons são não apenas possíveis, mas imperativos, porque a cultura está fazendo uma revisão do século. Você concorda? A que atribiu o interesse, que é tão recente, por mapeamentos sonoros como este? Não concordo com esse tipo de balanços, porque não me parece que as coisas funcionem dessa maneira. O mais importante para mim é continuar a trabalhar tendo como meta investigar exaustivamente todos os vestígios (neste caso musicais) que nos permitam preservar e mais tarde divulgar a herança dos nossos antepassados. Eu costumo dizer que a música popular morre todos os dias. Então, devemos constituir esse arquivo, para que outros possam utilizar mais tarde, criando novas sonoridades, novos compromissos musicais, numa natural e desejável evolução. Também acho que, na última década, aumentou muito a curiosidade pelas músicas do mundo. As pessoas procuram cada vez mais conhecer outras realidades musicais e, por meio delas, um pouco da cultura desses países. Existe algum tipo de levantamento minucioso das músicas regionais portuguesas? Vários pesquisadores realizaram trabalho de campo em Portugal, como Armando Leça, Artur Santos, Michel Giacometti e José Alberto Sardinha. Não foi realizado até hoje um trabalho de edição minucioso, consistente e abrangente. Mas posso revelar-lhe que temos atualmente em mãos um grande projeto, baseado no trabalho do meu grande amigo José Alberto Sardinha, que se mantém ativo, fazendo pesquisas por todo o país com caráter regular. A investigação teve início em 1972 e até 1982 tive o privilégio de o acompanhar. Vai ser uma coleção de livros (com 100 páginas e texto trilíngüe: português, inglês e francês) com CDs incluídos, e que se chamará Música de Tradição Oral em Portugal. Já temos bem definidos os primeiros 12 volumes. O primeiro será A Viola Campaniça - O Outro Alentejo. As gravações foram realizadas ao longo de vários anos em Odemira, Castro Verde e Ourique, onde predomina essa tradição. O segundo volume, Braga na Tradição Musical - A Rusga de São Vicente, vai trazer a público a história de um agrupamento etnográfico nascido a partir da rusga que, do bairro de São Vicente, da cidade de Braga, todos os anos se divertia tocando e cantando pelas ruas em direção à capela de São João, na época das festas desse santo popular. A coleção quer abranger as mais variadas facetas da nossa tradição musical popular, por meio de uma abordagem inovadora, com rigor científico, mas de forma acessível, apoiada com documentos sonoros em CD e ilustrada com fotografias, com texto que tanto pode falar de um instrumento como de uma aldeia, de um só tocador ou, por exemplo, de uma determinada região geográfica. Os dois primeiros volumes, de que lhe fale, deverão ser editados no início do próximo ano. Multiculturalismo e globalização seriam palavras a se usar na referência ao seu trabalho? O que pensa você desses conceitos? A Viagem dos Sons é, acima de tudo, um projeto com um altíssimo valor documental. Podemos falar em multiculturalismo se lembrarmos da imensidão geográfica que a coleção abrange, mostrando ao mundo grande parte da nossa história de navegadores (com todas as coisas boas e más que naturalmente encerra) e da contribuição que a aproximação com esses povos trouxe à cultura. Os discos estão recheados de exemplos musicais e é quase imperceptível hoje em dia (a não ser pelo estudo dos pesquisadores) que determinadas características sejam exportadas pelos portugueses para essas paragens. Foram por isso importantes para nós os enormes elogios recebidos do Smithsonian Institute, de muitas universidades, mas também a constatação de que A Viagem dos Sons virou um brinde institucional de algumas entidades nos seus permanentes contatos com o exterior. Temos, por isso, muita pena que a coleção não esteja disponível no mercado brasileiro, mas esperamos que essa nossa conversa desperte bastante interesse e permita uma maior divulgação nesse enorme país irmão. Estou disponível para todos os esclarecimentos. É um prazer imenso poder compartilhar essa nossa paixão com todos.

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