A essência de Liszt

Nelson Freire mostra sua enorme intimidade com o compositor na escolha inteligente do repertório de CD que celebra os 200 anos do músico húngaro

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Por Redação
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Um novo CD de Nelson Freire chega às lojas - e sites de downloads - do Brasil e do mundo na segunda-feira. Contratado exclusivo da Decca, o pianista brasileiro obedece, nesse caso com imenso entusiasmo, ao marketing das efemérides. No ano Liszt - comemoram-se em 2011 os 200 anos de seu nascimento -, pululam gravações das obras mais conhecidas, como as Rapsódias Húngaras 2, 4, 6, 12 e 15, o Sonho de Amor, etc., etc.

 

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Como há décadas Nelson curte enorme intimidade com Liszt, foi rara sua inteligência na escolha do repertório. Seu oitavo CD para a Decca foi gravado entre 26 e 31 de janeiro em Hamburgo, na Alemanha, com cinco peças curtas, duas mais alentadas e o ciclo Consolations. Nelson está mais afiado do que nunca. Personalíssimo, imprime rubatos que encantam, uma fluência já lendária e a incrível capacidade de estabelecer refinadas gradações de dinâmica e expressividade no toque.

O recital começa com Waldesrauschen, um dos dois estudos de concerto de 1862. É o melhor Liszt, em que a mão esquerda constrói em semicolcheias uma ondulação sobre a qual um tema brinca de perpétua modulação. A seguir, duas peças dos dois primeiros cadernos dos Années de Pélerinage, compostos sob a paixão por Marie d’Agoult. Do primeiro caderno, Suíça, Nelson toca Au Lac de Wallenstadt, plácida barcarola. E do segundo, Itália, Nelson escolhe a terceira das peças sobre sonetos do poeta Petrarca, do século 14. Elas nasceram como "lieder" e depois Liszt as transcreveu para piano. Grande momento de Nelson, entregue à música atormentada pelo amor.

Na Valse Oubliée n.º 1, do fim de sua vida, Nelson capta a inesperada economia de meios de um compositor transbordante.

As duas peças mais ambiciosas são o 11.º dos Estudos Transcendentais e a Balada n.º 2. Harmonies du soir, que dá título ao CD. Em plena maturidade, Nelson acaricia as notas e transmite o impossível. Isto é, uma certa sensação de imobilidade no instante, como disse um pesquisador. Harmonies começa no crepúsculo, eleva-se num canto de ação de graças sereno - com uma sucessão de acordes perfeitos sob um colchão de arpejos - explode em pura paixão no molto animato, trionfante, e retorna à paz da imersão na natureza. Os mesmos acordes perfeitos sob arpejos retornam na Balada n.º 2, de 1853, tão bela quanto as muito mais conhecidas baladas de Chopin. Talvez esteja aqui o clímax dessa excepcional gravação. Ambiciosa em seus quase 14 minutos, ela faz atribulada viagem tonal, que sai de si menor, viaja por tonalidades distantes até retornar em si bemol maior.

O arsenal virtuosístico da escrita lisztiana exige o máximo do intérprete. Qualquer ouvido sente a mudança do tom menor para o maior, transfiguração magistralmente conduzida por Nelson.

Comunhão é a palavra para qualificar como Nelson interpreta o ciclo Consolations (1849-1850), seis peças atípicas na produção de Liszt. Fogem do virtuosismo, qualquer pianista amador consegue martelá-las ao piano. Raros são os que conseguem extrair a essência fugidia dessas peças quem sabe escritas sob o impacto da morte de seu amigo Chopin. Nelson consegue isso, mesmo dentro de pequenos arcos de dinâmica, como na primeira delas, um contrito "Andante con moto". No fim triunfa a música, num gesto bem lisztiano, ou "a vida continua", conclui filosoficamente a sexta vinheta do ciclo, intitulada "Allegretto sempre cantabile".

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Bem, ano Liszt oblige. Era preciso fazer uma rapsódia húngara. Nelson escolheu uma das menos conhecidas, a terceira, e o resultado é impactante.

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