Em determinado momento, a tensão era quase insustentável. Palpável, praticamente, se fosse realmente possível. Kim Gordon e Thurston Moore, líderes e fundadores de uma das mais icônicas bandas do rock alternativo, o Sonic Youth, não conseguiam mais olhar um para o outro.
Idolatrados por gente como Kurt Cobain e Michael Stipe, e considerados pela MTV norte-americana como bastiões do underground, eles haviam rompido o casamento iniciado em 1984, o casal não trocava uma palavra sequer nos últimos shows da banda na história, na América Latina.
A última performance daquela turnê, realizada no Brasil, acabou por ser a derradeira da banda. Nunca foi anunciado um fim, mas o guitarrista Lee Ranaldo viria a dizer, depois, que não enxergava futuro para o Sonic Youth.
Thurston Moore (voz e guitarra), seguiu com sua vida com a nova namorada e diversos projetos musicais: entre eles, dois discos solos e a sua nova banda, a Chelsea Light Moving.
Kim Gordon (voz e baixo do SY) fez uma retrospectiva de artes visuais na White Columns, em Nova York, criou a banda Body/Head, um duo formado ao lado de Bill Nace. Mas, principalmente, Kim Gordon decidiu revisitar a própria vida. Assim nasceu A Garota da Banda, livro lançado originalmente em fevereiro de 2015 e que chega nesta segunda, dia 7, ao Brasil pela Fábrica231, selo da editora Rocco.
O título faz, já de forma direta, uma referência à pergunta mais gasta feita a mulheres em bandas de rock: “E aí, como é ser a garota da banda?”. O detestável questionamento, em tantos sentidos, atormentou Kim Gordon, uma das maiores garotas de banda que o rock já viu, ao lado de Debbie Harry, Joan Jett e Patti Smith. E, ao longo de quase 300 páginas, é exatamente isso que Kim tenta explicar.
Ou melhor, a banda é apenas uma parte da vida da garota nascida na pequena Rochester, no Estado de Nova York, que rodou o mundo ainda na infância, até encontrar o alto e magrelo Thurston Moore, já em Manhattan, e com ele fundar a banda que alicerçou o noise rock mundial. Foram 30 anos com o Sonic Youth, 27 deles casada com Thurston Moore.
A autobiografia trata de responder à questão de diferentes maneiras. Afinal, ser a garota da banda também é enfrentar situações como as turnês durante férias escolares, um episódio de vazamento de leite materno.
O título original, A Girl in a Band é tirado diretamente da canção Sacred Trickster, escolhida para abrir o último disco lançado pelo Sonic Youth, em 2009. “Como é ser a garota na banda?”, pergunta Kim na canção. “Eu não entendo direito”, ela mesma responde. O disco, The Eternal, transformado em derradeiro dois anos depois, não encerra de forma melancólica a carreira da banda, diga-se de passagem. Um bom álbum, com 12 canções interessantes e o casal Kim e Thurston em ótima forma.
É fora do Sonic Youth, contudo, que estão as grandes pérolas de A Garota da Banda. A formação da personalidade de Kim é intrinsecamente ligada à presença do irmão mais velho, Keller. Ele, que mais tarde viria a ser diagnosticado como esquizofrênico e paranoico, é o único parente próximo vivo dela, conta a roqueira no livro. Até hoje, ela o visita na casa na qual ele está internado, na Califórnia.
A presença às vezes agressiva do irmão mais velho, explicam as memórias de Kim, oprimiram a garota por anos e anos, até os anos de adolescência. Ela se mostra ressentida do fato de que seus pais nunca a ajudaram ou a protegeram do irmão. Ela lembra de uma noite na qual ele, em devaneio, pulou para a cama dela, nu. A relação com Keller, hoje, soa como o último resquício da vida antes da independência.
Filha de um professor e uma dona de casa com inspirações artísticas reprimidas, Kim Gordon tem poucas lembranças da cidade de Rochester, onde nasceu. Lembra-se do dia em que a família se mudou para a Califórnia, atravessando os Estados Unidos, e a mãe os fazia comer batatas fritas ao estilo hash brown, “por ser algo típico do oeste norte-americano”.
Kim aprendeu a surfar na Califórnia, viveu ainda no Havaí e até em Hong Kong. Detalhes – mas não muitos – dessas peripécias são apresentados no livro quase em ordem cronológica.
Por motivos óbvios, é o fim do Sonic Youth que surge nas primeiras páginas. Suprem o próprio desejo e curiosidade do fã ocasional, assim como dos adoradores mais fervorosos.
Kim chegou a falar ainda mais sobre o término em entrevistas relacionadas à divulgação do livro, no início do ano. Detalhou todo o fim. A mensagem anônima e suspeita que encontrou no celular do hoje ex-marido, a briga, a barreira que cresceu entre eles, mesmo com a tentativa de terapia de casal. Por fim, a separação foi inevitável.
A mais incrível viagem que A Garota da Banda oferece é justamente a viagem interessante por dentro da mulher que transformou a vida musical de tanta gente com o ruído de seu instrumento. Um animal selvagem e dissonante no palco, doce fora dele. Pormenores às vezes sem grande sentido criam essa colcha de retalhos da personalidade de Kim Gordon.