A Arca de Noé é recriada em versão para ninar

O antológico Arca de Noé, de Vinícius de Moraes (1913-1980), ganha versão instrumental com sons captados digitalmente de antigas caixas de música

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Por Agencia Estado
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Quase dois séculos de evolução tecnológica, que unem as pontas da história dos sistemas de gravação de música, estão sintetizados no CD "Nos Embalos da Arca de Noé" (selo Angels Records). A partir de um incrível acervo de caixas de música pertencente à colecionadora paulista Bia Guper, herdeira do acervo de Milton Guper, o produtor e compositor carioca Leão Leibovich recriou as clássicas canções infantis de Vinicius de Moraes (1913-1980) em versões para ninar. Foram três meses de trabalho minucioso, desde a captação dos sons de seis caixas diferentes, nota por nota, até o processo de digitalização e organização dessas notas. "O CD é o resultado do sampler desses sons trabalhados, mas na verdade a mídia CD veio das caixas de música, porque com elas pela primeira vez as pessoas tiveram a possibilidade de ter música dentro de casa, a partir de 1820, sem precisar tocar nenhum instrumento nem contratar músicos", lembra Leibovich. A música mecânica programada começou no final do século 17 com os realejos, que se valiam de técnicas evoluídas a partir do mecanismo de cordas dos relógios suíços. Depois vieram as caixas de música com a expansão do sistema binário de pente musical e cilindro com pinos. Filho do médico Ernesto Leibovich, que começou a colecionar caixas de música a partir de uma visita à família Guper, Leão herdou o gosto pela antiguidade, especializando-se no assunto. "O grande barato disso é que são coisas muito antigas, mas que, ao contrário de uma escultura, de uma tapeçaria ou de um quadro, elas têm vida, pulsam, se mexem. Então, além do valor histórico e artístico, elas ainda têm vida, que é o mais importante." Acervo dos mais importantes do País Apesar de lidar com caixas de música há anos, esta é a primeira vez que ele utiliza o acervo dos Gupers, um dos mais importantes do País. "Viemos aqui com equipamentos de última geração e microfones de alta sensibilidade", conta. "Então ficava dentro da caixa com um grampinho tirando os sons e o técnico gravando e catalogando: Paillard 1850, pente musical, nota 1. Castanhola, duas castanholas, tamborzinho, etc., durante três meses. Isso tudo virou uma biblioteca de sons." O CD tem 14 faixas instrumentais e uma bônus reunindo todas as canções em versões cantadas. O encarte traz as letras para quem quiser ninar os bebês acompanhando canções como "O Pato", "A Casa", O Relógio. Os poemas de Vinicius que ganharam música de Toquinho e Paulo Soledade, entre outros, saíram pela primeira vez em disco em 1980. O segundo volume veio em 1982. O elenco de intérpretes reunia medalhões como Elis Regina, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Milton Nascimento, Alceu Valença, Fagner, MPB-4. As versões de Leibovich são mais sossegadas, tanto é que o produtor adverte: "Não ouça no carro, porque você pode dormir no volante." Afora isso, apesar de ser um CD infantil, "mexe com o romantismo e o subconsciente das pessoas que querem passar o filé mignon para os filhos". E, completa Bia Guper, "fugir da estupidez do mundo". O produtor Leibovich tem selo há 13 anos Além de fazer produção musical, jingles e trilhas sonoras, o compositor Leão Leibovich dirige há 13 anos o selo e gravadora Angels Records, especializados em CDs infantis como a bem-sucedida produção de Bia Bedran. A Angels é também pioneira na linha de canções com sons de caixas de música "A diferença entre nossos discos e os de outras gravadoras, é que nós usamos os sons originais das caixinhas", diz Leibovich. "Caixinha de Dormir", lançado no final de 1997, é o campeão do selo, com 80 mil exemplares vendidos. O CD reúne versões instrumentais de cantigas infantis consagradas como "Ciranda, Cirandinha, Tutu Marambá, Boi da Cara Preta e Terezinha de Jesus", reunidas em blocos. Um deles é dedicado a canções de Natal como "Noite Feliz" e "Jingle Bells". Nos dois volumes de "Nana Nenê", Leibovich reuniu peças famosas de compositores eruditos, como Vivaldi, Mozart e Beethoven, em arranjos com sons sampleados de caixinhas de música, mais cordas e percussão leve. O melhor do catálogo do selo, além do projeto com as canções de Vinicius de Moraes, é "Caixinha Brasileira", que reúne em medleys muito bem montados sucessos de autores populares brasileiros, entre eles Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Noel Rosa, Luiz Gonzaga e Pixinguinha. Valioso acervo à espera de um museu Quando se fala em caixas de música, o senso comum associa aquele som metálico e delicado à dança de uma boneca minúscula em forma de bailarina. Só que esse universo lúdico não se limita às "caixinhas" do gênero. Há exemplares grandiosos e sofisticados desses aparelhos, ainda que raros e pouco Conhecidos. Dezenas dessas maravilhas de fabricação alemã e suíça, em madeira de árvores frutíferas, que têm melhores propriedades acústicas, estão no acervo de Milton e Bia Guper, num sítio perto de São Paulo. Deparar com a coleção de Paillards, Komets, Pollyphons na grande sala da casa já é como entrar num museu vivo, ou num parque de diversões de antiguidades. Além das caixas de música, há realejos, miniaturas de trens, máquinas de caça-níqueis, relógios de pêndulo, uma fantástica bicicleta do século 18 e barcos confeccionados pelo próprio doutor Milton, que era médico ortopedista e morreu em 1999. Numa sala anexa há exemplares de juke boxes, que dão continuidade à história musical do acervo. Peça incrível é a pianola, do fim do século 19, que utilizava rolos de cartões perfurados e motor elétrico. Bia tem 400 exemplares desses rolos, com gravações originais de Beethoven, Mozart e Chopin, entre outros. "Este é o primeiro cassete da história e a dimensão da música que sai daqui é como se você estivesse no Municipal", compara Bia. "E o mais curioso é ter Chopin tocando Chopin, Beethoven tocando Beethoven, Mozart tocando Mozart, cada rolo desse é original." Milton Guper foi coletor de aparelhos sonoros da virada do século 19. "O patrimônio foi mantido vivo e tenho tentado manter dentro do que entendo. Todas as caixas estão perfeitas, funcionando, mas exigem manutenção constante. Não podemos deixar isto acabar. Então, se alguma instituição se mostrar interessada em montar um museu, estou disposta a negociar", diz a colecionadora. "É tudo artigo de alta sofisticação, de alto luxo que hoje em dia ninguém faz mais."

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