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Pós-conceito

O rabino e escritor Nilton Bonder comenta o pós-conceito e a consciência humana

Por Nilton Bonder
Atualização:

Desde os primórdios da consciência, os sentidos da visão e da escuta disputam proeminência sobre a razão.

A visão é objetiva e factual, a escuta é subjetiva e relativa. A visão instrui a razão com o passado, com o que foi registrado. A escuta instrui a razão com o futuro, com o que será interagido. A visão é o julgamento, a escuta é o estudo. A visão é a informação, a escuta, o aprendizado.

E a consciência humana inclinou-se à escuta.

A consciência, ao eleger a escuta, tornou-se maior que a razão e que o próprio conceito. Ganhou a potência do pós-conceito, de ir além e encadear novos conceitos Foto: Leonardo Albertino

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Primeiro porque o julgamento define uma única sentença; enquanto o estudo, através da crítica, audita seus vereditos por instâncias cada vez mais superiores. Segundo, porque a informação não é eficaz no combate à ignorância e ao preconceito da forma que é o aprendizado. 

Há três tipos de ignorâncias: a leve, que é “não saber”, a moderada, que é “supor saber quando não sabe” e a grave, que é “politizar o saber” ou “saber antes de saber”. A moderada e a grave originam o preconceito. Uma opina antes do entendimento; a outra, avalia por crença ou intolerância prévia. Numa, a apreciação antecede o conceito, noutra, o juízo precede a apuração. 

Ou seja, o preconceito inviabiliza o conceito e se mostra irracional.

A consciência, ao eleger a escuta, tornou-se maior que a razão e que o próprio conceito. Ganhou a potência do pós-conceito, de ir além e encadear novos conceitos. 

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A visão, ao pretender informar, discrimina e segrega; enquanto a escuta, no afã de descobrir, aproxima e aprecia. O salto evolutivo de cooperação humana decorre do ensino contraintuitivo aos filhos para que, em vez de ver, escutem.

Talvez por isso se postule em texto clássico judaico que Shem, um dos filhos de Noé, era negro. Shem, o pai dos semitas, de judeus e árabes. Seria esse um fato visual ou uma alegoria da escuta que afirma sermos todos negros, asiáticos, latinos, brancos ou outra categoria ocular?

Esse tem sido o esforço milenar humano: não escrutinar as diferenças do olhar, mas as semelhanças da escuta. Assim interage um humano com outro humano.

Quem sabe nas últimas semanas reafirmamos este pacto original com a escuta?

* Nilton Bonder é rabino, autor de 23 livros traduzidos em 18 idiomas, dois deles adaptados ao teatro e cinema. Fundador do Centro Cultural Midrash no RJ, dramaturgo de Cura, próximo trabalho da Cia. de Dança Deborah Colker, e da peça Eros, com direção de Marcio Abreu.

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