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Olhe para cima

O medo escondido na ansiedade parecia natural, afinal tinha experimentado, como o mundo todo, a sensação de completa falta de controle, sentimento escancarado por uma pandemia que ia e vinha

Por Alice Ferraz
Atualização:

Malas prontas e uma desconhecida ansiedade faziam ela se sentir como se estivesse prestes a embarcar para suas primeiras férias. Os dois últimos anos tinham se misturado, condensado suas memórias, resumindo meses, abreviando lembranças de vivências que agora pareciam se sobrepor. “Mas isso foi ano passado ou no outro?”, perguntava-se com frequência. 

O medo escondido na ansiedade parecia natural, afinal tinha experimentado, como o mundo todo, a sensação de completa falta de controle, sentimento escancarado por uma pandemia que ia e vinha. Um mundo “seguro” já não existiria mais, e essa nova sensação de ansiedade evidenciava efeitos colaterais do novo aprendizado. Um mundo em constante transformação era a realidade. 

Ilustração "Não Olhe Pra Cima", para a coluna de Alice Ferraz. Foto: Juliana Azevedo

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O dia anterior à viagem amanheceu com o céu mais escuro do que o previsto e enquanto finalizava as malas, assistia junto com o marido um novo lançamento no streaming e acompanhava as notícias pelo mundo. O filme avançava em uma narrativa angustiante onde dois cientistas descobrem que em seis meses o planeta Terra seria destruído, impactado por um asteroide. 

A trama evoluía na TV enquanto as notícias de que chuvas torrenciais caíam sobre a Bahia apareciam em sua segunda tela. Enquanto no filme os cientistas não eram ouvidos e governo e população não se mobilizavam para evitar a catástrofe, sua mente inquieta fazia paralelos sobre a razão que a faria embarcar para um destino que se transformava de notícia em notícia em um lugar que precisava de ajuda e não de uma turista inconsciente querendo aproveitar o ‘dolce far niente’, a doçura e leveza de não fazer nada. 

O filme acaba, a Terra é atingida pelo asteroide identificado, mas não encarado de frente para que pudesse ser destruído. No mundo “real”, ela esperava para tomar uma decisão, quem sabe receberia o telefonema de um cientista? Concluiu, em uma ligação para o gerente do pretenso paraíso, que não chegaria de carro, nem de barco. 

Pelo volume de água das chuvas, estradas não levariam turistas e certamente nem remédios e alimentos necessários depois da trágica noite de inundações. Ouviu a sugestão ainda de ir pelo ar – “a chuva não atrapalha, voamos baixinho”, disseram entusiastas, em uma tentativa de convencê-la. Mulher e marido se entreolharam, desfizeram as malas e combinaram um jantar no centro de São Paulo.

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