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O vizinho

Era chegar na costa, abrir um vinho, sono profundo, dias de leitura e um cardápio cheio de delícias. Até que uma nova família começou a frequentar a mesma praia

Por Alice Ferraz
Atualização:

Há alguns anos, a casa de praia trazia a paz e o aconchego que eles precisavam para o fim de semana. Ao lado da Serra do Mar, a mudança de ares trazia uma calmaria e as duas horas de carro funcionavam como um tempo de descompressão para o casal. Era chegar na costa, abrir um vinho para ser degustado com queijos e, quando estava frio, uma lareira com barulho das ondas ao fundo, para que a noite ficasse perfeita. Sono profundo, dias de leitura e um cardápio cheio de delícias feitas pela caseira reconhecida na região por seu tempero, marcavam esses dias. Se existia algum programa melhor, não conheciam. 

Até que uma nova família começou a frequentar a mesma praia – ou será que já frequentavam e eles nunca tinham reparado? O fato era que o vizinho acordava cedo e logo de manhã já estava com as crianças pequenas paramentadas em suas respectivas bicicletinhas, prontas para o primeiro exercício do dia. Sim, primeiro porque o vizinho, depois disso, também corria na rua de trás da praia. Lá ia ele, dessa vez sozinho, veloz. “Será que é atleta?”, se entreolharam enquanto iam de havaianas até a padaria em busca do pão francês bem quentinho. Voltando para a praia com jornais, se debruçaram por toda manhã nas notícias do dia. 

Não falaram do assunto, o vizinho, mas combinaram de ficar alguns finais de semana em São Paulo para “descomprimir” Foto: Juliana Azevedo

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Lá pelo meio dia, caipirinhas e drinques estavam prontos e a lula frita para acompanhar também. Olhando para a barraca ao lado, lá estava o vizinho, também feliz, agora correndo na praia de tombo mesmo, pés descalços. “Que loucura, deve até fazer mal para a coluna”, o casal pensou. 

Enfim, casquinha de siri chegando e o marido se estica na cadeira para pegar uma cor, mas, por poucos minutos o casal, não conseguiu evitar a cena diante deles: uma prancha de madeira, dessas de filme, lindamente talhada à mão. Era o vizinho, agora pronto para levar as crianças para mais um programa. Pegava uma no colo com os braços musculosos, a colocava delicadamente sobre a prancha e saía em direção ao alto mar, remando em pé, em equilíbrio perfeito com o pequeno em êxtase para uma miniaventura. Depois de um tempo, voltava para pegar o outro, esse já à espera com seu minicolete salva-vidas. De um em um, os três passearam.

Quando acabou, o vizinho comprou sorvetes, guardou a prancha e o casal, agora na terceira caipirinha, pediu em silêncio a Deus para ele, o vizinho, parar quieto, tomar um drink, demonstrar impaciência ou até pedir batatas fritas engorduradas, mas o vizinho sentou ali ao lado, se alongou, fez posições de ioga e depois colocou sua touca de natação e mergulhou para sua sessão de nado no mar. 

Sem falar nada, o casal se levantou da praia, comeu sem muito gosto o risoto que já estava pronto. Dormiram depois do almoço como de costume, mas tiveram, os dois, um sono inquieto. Resolveram voltar antes da praia naquele domingo. Ela marcou na segunda a tão adiada consulta na clínica de emagrecimento, ele comprou uma esteira e um relógio para contar passos. Não falaram do assunto, o vizinho, mas combinaram de ficar alguns finais de semana em São Paulo para “descomprimir”.

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