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Cerimônia do chá

Nunca vou me esquecer da liberdade que senti ao entender que tinha condições de ganhar meu próprio sustento

Por Alice Ferraz
Atualização:

Trabalhar faz parte da minha vida desde os 16 anos, quando fui contratada pela primeira vez como funcionária extra de Natal em uma famosa marca de jeans dos anos 1980, a M. Officer. Passar dias procurando emprego, ter sido entrevistada e descartada como opção em várias lojas e, finalmente, encontrar um lugar em que pudesse ser útil foi transformador na forma como minha trajetória se desenhou a partir daí. 

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Nunca vou me esquecer da liberdade que senti ao entender que tinha condições de ganhar meu próprio sustento. Na época, eu não pensava em sair da casa dos meus pais, mas a sensação de realizar um trabalho e, assim, conseguir ganhar meu dinheiro me fortaleceu. A adolescente nariguda, sem seios, asmática e repetente enxergou que tinha, sim, valor. 

Trabalhar se transformou, então, em prazer e vício. Li todos os manuais de vendas da época e usava as técnicas acreditando poder reforçar minhas habilidades. Com faróis voltados para esse passado, vejo que o propósito que me motivava era simplesmente trabalhar e entregar o melhor que eu pudesse. Não existia uma visão do que eu queria me tornar, um foco em algo maior do que realizar aquela função com excelência. Não tinha plano de carreira, vislumbrando ser gerente da loja. Era fazer o melhor e isso me preenchia de motivação. 

Como na cerimônia do chá, um ritual japonês milenar que segue critérios rígidos e que pode levar quatro horas para ser realizado Foto: Juliana Azevedo

Passados 34 anos daquele meu encontro com a realização da utilidade, recebi semana passada uma mensagem que instantaneamente me remeteu à menina esforçada de décadas atrás e às futuras críticas recorrentes que acompanharam minha jornada. O WhatsApp enviado por uma colaboradora, com vasta experiência na área, que se despedia de mim depois de trabalhar por alguns anos com a minha empresa atual, me trouxe uma inquietação e quando isso acontece sei que fui tocada em algum lugar que precisa ser investigado. 

Entre formalidades e um agradecimento pelo tempo juntas veio a frase: “Você me fez acreditar que existem pessoas que querem fazer a diferença apenas fazendo um bom trabalho”. O que pegou aí, Alice? Foi um elogio, entendo e agradeço. Mas a conclusão é que com o advérbio “apenas”, a colaboradora deixa claro o espanto por conhecer alguém que “só” quer trabalhar bem para trabalhar bem, sem nenhuma segunda intenção. 

A estranheza causada pelo meu esforço de realizar e exigir o melhor trabalho sem que exista algo por trás, uma vantagem desconhecida, uma agenda paralela que norteie a intenção, não foi nova e, por isso, me atingiu. Ser questionada por parceiros profissionais e até clientes do porquê da intensidade, do porquê fazer a mais, estudar tanto cada assunto em detalhes, rever tanto textos, imagens, apresentações e exigir tanto de si e dos outros me acompanha há décadas. 

Assim como um esportista profissional, que tenta sempre superar sua conquista anterior, eu talvez acredite na constante evolução individual através de qualquer tipo de trabalho. Como na cerimônia do chá, um ritual japonês milenar que segue critérios rígidos e que pode levar quatro horas para ser realizado – e que é “simplesmente” visto como “tomar um chá” para alguém de fora dessa cultura. O estudo, a concentração e a repetição exaustiva do ritual de cerimônia do chá leva seus praticantes a incorporarem preceitos filosóficos que são absorvidos por todos os aspectos da vida. Assim, entregar o melhor de si mesmo ao trabalho em uma cerimônia do chá diz mais sobre quem serve do que sobre quem é servido. 

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