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Alice Ferraz: Dias frios

Nesses dias, usava um recurso antigo e pessoal: colocava sua criatividade para entreter a própria mente com possibilidades de pequenos momentos de alegria

Por Alice Ferraz
Atualização:

Um frio polar invadia o quarto na manhã cinza de inverno. “Será que junho sempre faz esse frio em São Paulo?”, pensou, enrolada por baixo de três camadas de cobertores. “Há dias que tem cara de coisa nenhuma, nascem sem graça, quase sem sentido”, disse a si mesma. 

Nesses dias, usava um recurso antigo e pessoal: colocava sua criatividade para entreter a própria mente com possibilidades de pequenos momentos de alegria. O cheiro do café fresco, o toque de sua mão na porcelana quente da xícara recém-escaldada, uma ligação para uma das irmãs para saber das novidades, tudo era percebido como uma oportunidade de pequenas alegrias.

“Há dias que tem cara de coisa nenhuma, nascem sem graça, quase sem sentido” Foto: Juliana Azevedo

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Fazia mais de um ano que o filho tinha saído de casa e nessas manhãs nubladas a falta do papel de mãe trazia à tona uma faceta sua com a qual ainda não sabia lidar, uma solidão de quem se sente desnecessária. Acordar e não ter alguém necessitando sua presença utilitária, detectou, era incômodo. 

Sabendo que esses dias aconteciam com frequência, marcava entrevistas logo pela manhã. Conversar com pessoas, conhecê-las mesmo quando não existia afinidade, era um exercício que a fascinava. Sem maquiagem, colocou uma roupa que a abraçava para trazer o conforto que não sentia.

– “Meu nome é” – disse ela sendo prontamente interrompida, – “Sei quem você é, vamos conversar?”, disse a senhora altiva, maquiada, cabelo arrumado e roupas que diziam nas entrelinhas que é uma mulher de seu tempo. Ela entendeu que falaria com uma igual que estava 30 anos à sua frente.

O dia frio e cinza não quebrou o ânimo da mulher de 83 anos pronta para a entrevista. Já tinha feito hidroginástica e trazia o ânimo da curiosidade no olhar. “O mundo está sempre mudando, nunca é o mesmo. Eu gosto da vida, tenho muitos projetos para o futuro independentemente do tamanho que ele seja”, disse, com um pequeno sorriso de canto. 

No bate-papo de uma hora, o trabalho da artista mostrou protagonismo na construção da sua vida – “o mundo ficou maior” – disse ela em determinado momento. Não falaram de vida familiar, de filhos, de marido. 

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Não falaram dos dias tristes, nem da sensação de não ser necessária que a essa altura já tinha sido esquecida. A profissão, a arte que tornou a mulher maior e atuante nesse mundo, preenchia os vazios que agora pareciam nunca terem existido.

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