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Alegria em tempos de pandemia

O rabino e premiado escritor Nilton Bonder fala sobre seu mais recente livro ‘Cabala e a Arte de Preservação da Alegria’, lançado este ano

Por Alice Ferraz
Atualização:

No último domingo de 2020, nossa conversa é com o rabino Nilton Bonder, líder espiritual da Congregação Judaica do Brasil e doutor em Literatura Hebraica pelo Jewish Theological Seminary. Como escritor, recebeu o prêmio Jabuti na categoria religião – seus livros já foram publicados na Holanda, Itália, Alemanha, China, Rússia, Coreia do Sul, Espanha, República Checa e nos Estados Unidos. A peça teatral A Alma Imoral, baseada em seu livro homônimo, ficou em cartaz por 14 anos, até o começo da pandemia, e foi assistida por mais de 1 milhão de pessoas. Bonder conversou com a coluna, da sua casa no Rio de Janeiro, sobre seu mais recente livro, Cabala e a arte de preservação da alegria (Editora Rocco, 2020).

Nilton Bonder Foto: Marcelo Hallit

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Rabino, durante a pandemia você lançou um livro sobre a alegria. De onde veio a inspiração?

Serotonina e bom cortisol. A primeira vem do sono com qualidade e da atividade física e a segunda do “estresse do bem”, que é o envolvimento com pessoas e coisas evitando a toxicidade. Esse é o lugar físico. Já o psíquico vem de sonhos e dos imaginários. Por incrível que pareça, a pandemia não afeta nenhum desses elementos, talvez até os revigore. O ganho de tempo com menos deslocamentos e mais internalização favoreceu a produção dessas “serotoninas”. Um mundo mais carente e sensível faz o mesmo na produção de adrenalinas que temos que administrar para produzir o “bom cortisol”, que é a empatia e o compromisso com a vida. Um mundo em processo de se superar e se repensar tem o potencial de aperfeiçoar e expandir olhares. Digo isso não com indiferença a todas as atribulações, mas porque nosso mundo viveu 10 anos em um único. Falta braço, mas daria para escrever 10 livros.

Como manter vivo esse sentimento depois de um ano tão difícil e assustador e com as atuais projeções para o ano que se inicia?

Existe uma diferença entre felicidade e alegria. A alegria é uma disposição aos sentimentos, ela não é relativa ao que nos acontece do lado de fora. Se coisas que julgamos boas acontecem, ficamos felizes e, às vezes, alegres. Se coisas penosas nos acontecem, ficamos infelizes, mas podemos permanecer alegres. Nesse caso, a alegria não virá pelos sentimentos da felicidade, mas pelos sentimentos da infelicidade. Estar aberto e acolher o que a vida nos oferece, sabendo que há frutos a serem colhidos em qualquer caminhada, resguarda a alegria. Os profissionais da saúde, por exemplo, foram heróis nessa pandemia porque agiram com envolvimento e resposta à vida. Isso é alegria. Foi um ano de muitas infelicidades e com potencial para outras em 2021, mas não foi um ano desprovido de alegria, muito pelo contrário. Diferencie sempre as duas experiências, porque entender a alegria como independente dos acontecimentos, modifica por completo a percepção da vida.

Em Cabala e a arte da manutenção da carroça, você fala sobre lidar com a lama, o buraco, os reveses e a escassez, sensações que vários de nós tivemos nesse momento de pandemia. Pode falar sobre essa sua visão e o que o livro traz?

Esse livro é sobre riscos. O principal em relação ao risco é saber qualificá-lo. Quem sabe fazê-lo não entra num jogo, mas investe. Por isso o risco é inevitável e a mutação sabe disso. A natureza não fica satisfeita com o conceito de “time que está ganhando”, e faz o que todo o investidor realiza: “apostas esclarecidas”, instruídas por informação e discernimento. No livro, reflito sobre quatro tipos distintos de riscos. Num momento pandêmico, não só temos os riscos simbólicos da lama, que é a gestão rotineira da volatilidade; a dos buracos, que é o gerenciamento das incertezas; a dos reveses, que lida com ambiguidades; mas também do risco sistêmico que é sobre escassez. Gerir escassez não é fácil e depende de uma qualidade que é contraditória – uma atitude positiva de abundância. Na escassez o que mais falta não é matéria-prima, mas “recipientes”. Isso porque todos se retraem em modo proteção e desaparecem não os meios, os capitais, mas os fins, os investimentos que são “receptáculos”. Baixar a vela em tempestade pode ser uma ação correta se você não tem nenhuma estratégia (vasilhame). Se tiver, talvez o risco de uma vela aberta faça a diferença entre se salvar ou não. Com certeza o que não se pode fazer com a escassez é tratá-la como se fosse um problema diário de lama, ou flutuações da normalidade dos buracos, ou as turbulências esperadas dos reveses. Há complexidade na escassez, mas se você se equipar para este desafio, o impedimento pode turbinar seu movimento. É o princípio de qualquer voo: resistência.

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No mesmo livro você diz: “Por mais vigilantes que sejamos e por mais preparados que estejamos, haverá momentos em que a lama prevalecerá. Nesses momentos, não há outra saída a não ser descer da carroça e entrar na lama junto com o cavalo e empurrar. Importante registrar, porém, que a experiência desses momentos não será mais na condição de shit, de um incidente, mas sim de aceitação da essência daquilo que é uma estrada. A mesma terra que dá sustentação também produz a lama”. Em um mundo em que aceitar a derrota e o fracasso, mesmo que momentaneamente, parece um símbolo de fraqueza e é visto como uma pecha eterna, qual a mudança de pensamento nos faria aceitar entrar na lama?

As pessoas entendem “shit happens” como um azar, um “volte três casas”, como se fosse uma armadilha, uma “roubada” na qual entraram. Assim como os cientistas aprenderam que os milhares de insucessos fazem parte da descoberta, nós também não devemos desanimar por revés que se apresente. Com a atitude certa, o revés é uma etapa importante do potencial “dar certo”. Esse é o comportamento necessário para qualquer conquista. Isso diferencia diametralmente entre quem diante do insucesso fica mais animado e quem desanima. A riqueza da lama é que ela é parte do chão e do caminho. Quem entra na lama ganha maestria e recursos que emanam das inércias. Quem só souber navegar com a maré deverá esperar a sorte, um evento, sem dúvida, raro. A outra atitude é estar pensando na “limonada” ou na potência de ser um expert no que deu errado. O mesmo já acontecia na escola e você nem percebia. Você achava que o bom aluno era o sujeito que tudo sabia, quando era o que focava em suas dúvidas e questões. O sucesso não estava na prospecção de respostas, mas de melhores perguntas, dessas que não temem entrar na lama e na escuridão de sua ignorância. É deste lugar evitado e terrível que emana o melhor fertilizante para o empreendimento e a autonomia.

Nesta última semana, o mundo parou para ver o céu. Astrônomos do mundo todo chamaram nossa atenção para o encontro dos dois maiores planetas do sistema solar. Júpiter e Saturno. Segundo a astrologia, este é um momento extraordinário. Em sua opinião, existe uma mensagem real? Qual é ela?

Parodiando Carly Simon para Mick Jagger, “você é tão vaidoso, provavelmente pensa que essa música é sobre você!”. Adoro astronomia e sei apreciar os acasos e ocasos. Mas assim como um pôr do sol mágico não é uma mensagem ao sujeito, mas tão somente um convite a que este sujeito entre e aprecie a vida, acho que devemos evitar as armadilhas da egolatria. Mas, para também não deixar de fora o mistério, percebendo melhor, sim, a música era sobre ele mesmo! Alerto apenas que as pessoas preferem fazer de um momento um “feliz momento” – uma coincidência ou um agrado dos céus – do que simplesmente aceitar o convite para dançar com sua alegria.

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