A união faz a força

O estilista Isaac Silva relembra histórias do universo da moda para refletirmos sobre o poder de unificar nossas ações por um mundo sem racismo

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Por Isaac Silva
Atualização:

O lugar do branco é repleto de privilégios simbólicos, mas também materiais e palpáveis, que colaboram para a construção social e a reprodução do preconceito racial. Gestos simples podem combater e vencer esse sistema, e não são poucos os exemplos desses atos na história, entre eles a amizade de Marilyn Monroe e Ella Fitzgerald. Mas, para isso acontecer, relembremos, uma precisou da ajuda da outra.

Ainda nos anos 1950, quando os Estados Unidos enfrentavam a segregação racial, negros eram impedidos de viver e usufruir da mesma liberdade que brancos. A casa noturna The Mocambo, em Hollywood, frequentada por famosos, era um dos muitos locais que não aceitavam performances de artistas negros. Mas Ella encontrou uma defensora e aliada entre os privilegiados brancos: era Marilyn. A atriz, cansada de ser tachada de sex symbol na Costa Oeste, rumou para Nova York. Lá, conheceu Ella e seu talento. Junto com o empresário da cantora, Norman Granz, a atriz mexeu alguns pauzinhos para que o prestigiado clube de Los Angeles convidasse Ella para tocar. “Eu devo muito a Marilyn Monroe”, afirmou a cantora, em 1972. “Ela mesma ligou para o dono do Mocambo e disse que queria que eu fosse agendada imediatamente e que, se ele assim o fizesse, ela estaria na primeira fila todas as noites.” O proprietário da casa de shows concordou e, mantendo sua palavra, Marilyn foi a todas as apresentações. “A imprensa apareceu. Depois daquilo, eu nunca mais tive de tocar em um clube de jazz pequeno.”

Capa da 4ª edição da Moda traz histórias do universo da moda nos inspiram a refletir sobre o poder que temos de unificar nossas ações por um mundo sem racismo Foto: Jacques Dequeker/Moda

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As performances de Ella no Mocambo fizeram com que se tornasse a artista reconhecida que é até hoje. Apesar da morte trágica de Marilyn, Ella encontrou formas de retribuir o favor dando um outro olhar ao que a opinião pública tinha da atriz. Em muitas entrevistas para a imprensa, dizia o quanto a loira era uma mulher fora do comum, à frente de seu tempo. Essa linda amizade mostra como pessoas brancas podem ser um escudo, ser a ponte e até a solução desse grande mal da humanidade.

Outro exemplo importante da força que existe nessa união entre brancos e negros é o da modelo Naomi Campbell. Em sua biografia, ela conta como as amigas e também modelos Christy Turlington e Linda Evangelista a ajudaram a vencer o racismo. “Tive sorte de ter Linda e Christy me defendendo. Elas diziam a certos estilistas que, se eles as quisessem nos desfiles, tinham de me contratar também. Ninguém nunca tinha visto esse tipo de apoio antes. Nós éramos amigas de verdade e as pessoas nos chamavam de ‘a trindade’”, relata a modelo no livro.

Outra história impactante é a de Ann Lowe. Foi ela quem criou o belíssimo vestido de noiva de Jacqueline Bouvier para seu casamento com John Kennedy, em 1953. Quando recebeu a missão para criar o vestido de noiva para o cisne da sociedade americana, Lowe ficou emocionada. Imaginem, uma estilista afro-americana contratada para vestir uma das mulheres mais cobiçadas do mundo. No entanto, dez dias antes de o casal dizer o tão esperado sim, um cano de água quebrou e inundou o estúdio de Lowe na Madison Avenue, destruindo dez dos 15 vestidos produzidos por ela, incluindo o tão elaborado look da noiva, que levara dois meses para ser feito.

Entre lágrimas, a estilista, então com 55 anos, pediu mais tafetá francês de marfim e seda rosa-doce e, com a ajuda de suas costureiras, trabalhou 24 horas por dia. 

A vida de Lowe

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Ann Lowe nasceu em Clayton, Alabama, em 1898. Sua avó era uma costureira escravizada, que costurava vestidos para seus donos brancos e abriu seu próprio negócio após a Guerra Civil. Assim, a pequena Ann aprendeu a costurar com a avó e a mãe desde cedo. Já aos 6 anos, ficou claro que ela era extremamente talentosa. “Ann reunia os retalhos da sala de trabalho da mãe, ia ao jardim e criava essas lindas flores de tecido”, conta Elizabeth Way, assistente de curadoria do Museu da FIT, que tem em seu acervo três vestidos de Lowe. 

Aos 16 anos, após a morte de sua mãe, Ann assumiu os negócios da família (e as inúmeras encomendas inacabadas da esposa do governador). Com isso, logo se tornou conhecida pela sociedade e, pouco tempo depois, casou-se, dando á luz o único filho, Arthur. Mas a união durou pouco. Meses depois, a esposa de um magnata a convidou para ir para a Flórida para criar vestidos para ela. Lowe aproveitou a oportunidade. “Foi uma chance de fazer todos os vestidos adoráveis que sempre sonhei”, disse ela ao Saturday Evening Post, em 1964. “Peguei meu bebê e entrei no trem.” O marido, que desaprovava sua ambição, enviou os papéis para o divórcio.

Cerca de dez anos depois, Lowe mudou-se para Nova York. Estabeleceu-se no Harlem com seu filho e começou a trabalhar como costureira em lojas de departamentos, como a Saks Fifth Avenue. Não demorou muito para que a notícia dessa jovem e talentosa artista se espalhasse. Quando Christian Dior viu seus vestidos pela primeira vez, perguntou com admiração (e, quem sabe, com uma pontinha de inveja?): “Quem fez essa peça?” A própria Chanel era uma grande admiradora de seu trabalho e levou métodos de acabamento primorosos de Lowe para suas criações.

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Por um período de tempo na década de 1950, o filho dela, Arthur, ajudou a controlar os gastos da mãe e a manter a empresa em funcionamento. Mas, em 1958, ele morreu em um acidente de carro e o negócio de Lowe acabou falindo. A estilista teve, então, de fechar o showroom e arcar com uma dívida de US$ 13 mil de impostos atrasados. Foi quando recebeu uma ligação da Receita Federal dizendo que um “amigo anônimo” cuidara de seus custos. Lowe acreditava ser Jackie o tal “amigo”. “Ela mostrou que um afro-americano poderia ser um grande estilista. Chegou ao topo da profissão, é uma grande inspiração”, diz a escritora Margaret Powell.

A história de Ann Lowe nos inspira, mas também mostra como o fator racial dificultou seu reconhecimento. Hoje, o assassinato de George Floyd trouxe de volta ao mundo a força de que precisamos. Estamos em 2020 e podemos (digo, precisamos!) acabar com o racismo. Ninguém tem culpa por nascer branco e rico, mas tem sim a responsabilidade de fazer parte da mudança. Por isso digo: contratem pessoas negras para cargos de liderança, leiam Lélia Gonzáles, Carolina de Jesus, Djamila Ribeiro; ouçam Racionais Mc, Olodum; observem a arte de Maria Auxiliadora e Ayrson Heráclito. Nenhum sistema humanitário existirá sem aceitarmos a diversidade.

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