Violência e esperança inspiram 'Morro dos Ventos', de Otávio Júnior

O livro traz o relato doído de uma menina moradora de uma comunidade de morro e que sente a falta de uma amiga

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Por Ubiratan Brasil
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“Falta uma voz no recreio... Sobra uma cadeira na sala de aula...”, lamenta-se a pequena narradora de Morro dos Ventos (Editora do Brasil), nova incursão – delicada, mas precisa – de Otávio Júnior em sua trajetória de amplos desafios, desde a conscientização antirracista até a defesa da infância, da cultura e da educação nas comunidades, especialmente as cariocas.

O livro traz o relato doído de uma menina moradora de uma comunidade de morro e que sente a falta de uma amiga, vítima de alguma ação violenta. “Quando bate a tristeza, olho para o céu e vejo o brilho daquele olhar”, observa ela, apoiando-se no fantasioso consolo de que amiga se transformou em uma estrela no céu.

Perda. O balanço vazio evoca a saudade da amiga perdida Foto: ILUSTRAÇÃO LETÍCIA MORENO

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A violência é retratada de forma sutil, indireta, como convém a uma criança. “A professora só deixava sair depois que a paz voltasse, aí podíamos ir para nossos lares... em segurança”, diz a menina, retratada agachada no chão, ao lado dos colegas de classe, todos assustados, na ilustração de Letícia Moreno, autora dos desenhos do livro.

Mas a situação não impede que a menina reaja – ainda que em sua comunidade, o Morro dos Ventos, a noite chega primeiro e a violência se espalha, gerando o temor da perda, as crianças entendem o valor da solidariedade e, quando a garotinha que perdeu a amiga vai até o alto do morro para gritar, na esperança de que o vento carregue seu desejo de esperança, outras crianças se unem a ela, reforçando o grito, escrevendo ‘paz’ em suas bolas e pipas.

“Escrever para crianças é um grande desafio”, comenta Otávio Júnior, que vem se consagrando até mesmo no exterior como um escritor que traduz para as crianças as mazelas dos pontos pobres do Rio de Janeiro, mas sem perder a esperança, mensagem que se tornou marca em sua escrita. 

Ele é autor de outras obras como O Garoto da Camisa Vermelha (Autêntica), sua estreia na literatura e que narra a rotina de um menino pobre, como soltar pipas, jogar bola de gude e correr nos campinhos esburacados de futebol.

Escreveu também O Chefão Lá do Morro (Autêntica), curiosa história de um típico mandachuva de comunidade (“Domina o morro armado até os dentes, rodeado por seus soldados e parentes”), mas que revela ainda uma face dócil ao confessar seu gosto por batata e carne moída, além de se divertir com banhos de mangueira no quintal e corridas atrás de pipas.

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No ano passado, lançou outras duas obras que só nasceriam a partir de alguém que conhece de perto a rotina de uma comunidade – Da Minha Janela (Companhia das Letrinhas) traz observações sobre pessoas e animais que passam diante da janela do narrador, que busca identificação com sua vida nas cores, traços e objetos que desfilam pela sua frente. 

Grande Circo Favela (Estrela Cultural) relata o encontro entre uma menina e um palhaço entristecido pelo fechamento do circo onde trabalhava. A garotinha envolve a favela onde mora em seu sonho de empreendedorismo para montar um circo para aquele artista.

Morador do Complexo da Penha, no Rio, onde nasceu, Otávio Júnior ganhou a alcunha de “livreiro do Alemão”, apelido que inspira o título do livro, publicado pela Panda Books, em que revela como se apaixonou pelos livros ao descobrir uma obra em um lixão, quando era garoto. Como os amigos não entendiam o valor desse gosto pela leitura, ele criou o projeto Ler é 10 – Leia Favela, em que aproxima os moradores da literatura. Sobre esse trabalho e seu recente livro, Otávio respondeu as seguintes questões.

O autor. Segurando uma pipa, principal brinquedo das crianças em comunidades: criou projeto para estimular a leitura Foto: ALEXANDRE SILVA

Em ‘Morro dos Ventos’, você equilibra um tema delicado (a morte de uma amiga, supõe-se por bala perdida ou outro tipo de violência) com a força da solidariedade entre as crianças. Como faz para manter esse equilíbrio? 

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Confesso que é muito difícil manter esse equilíbrio. Sou pai, tio, primo, amigo de muitas crianças nas favelas. Busco esse equilíbrio nas belezas da vida e a literatura me fortalece. Escrever para crianças é um grande desafio, conectar a boa literatura com temas atuais é um desafio maior ainda.

As crianças atualmente têm acesso a uma realidade às vezes dura demais para sua idade, graças à internet, à tecnologia. Mesmo assim, você acredita que existem temas que ainda seriam tabus para tratar com crianças?

A vida por si só já é um grande e misterioso tabu e as crianças estão inseridas nesse grande mistério. A própria morte é um tema pouco mencionado na literatura infantil – em Morro dos Ventos, o desafio foi inserir essa questão conectada com a violência. O que diferencia um habilidoso autor é como ele vai conectar e contar uma boa história.

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Como você analisa os movimentos de protestos que acontecem no mundo, em especial nos EUA, motivados principalmente pelo assassinato de George Floyd? Por que algo semelhante não acontece no Brasil?

Infelizmente, no Brasil, a questão racial não tem ressonância entre os desportistas, artistas populares, que comunicam com uma grande parcela do público, políticos etc. Eu vejo os movimentos antirracistas no mundo, sobretudo nos EUA, como um grande espelho para o Brasil. Essa luta é de todos e todas, porém os negros e negras estão na linha de frente, vejo muitas personalidades negras fortemente engajadas com a causa, sobretudo as mulheres negras.

Ainda sobre esse assunto, como transmitir para a criança brasileira a mensagem desse tipo de protesto?

Contando as histórias de nossos antepassados, as suas lutas, as suas vitórias.

É possível afirmar que finalmente o tema do racismo começa a ganhar prioridade no debate público brasileiro?

Não. Não. Não. Quais são as políticas públicas no Brasil para movimentos de cultura negra e luta contra o racismo? Esse debate é ampliado via sociedade civil organizada e movimentos pró-cultura negra.

Nesses seus anos de trabalho de conscientização pela arte, quais foram (ou são) os melhores frutos já colhidos? E quais ainda espera colher?

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Digo que estou bem no início de uma trajetória, amadurecendo as ideias, fortalecendo as bases e me conectando com fazedores culturais, sociais, políticos. Tenho aprendido muito com as mulheres negras, que têm trajetórias inspiradoras. Tenho muito orgulho dos livros que já publiquei e espero continuar publicando histórias que contribuem nessa luta antirracista. 

MORRO DOS VENTOS. Autor: Otávio Júnior. Ilustrações: Letícia Moreno. Editora: do Brasil (32 págs. R$ 48,20)

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