Uma análise sobre a relação entre o mundo das letras e a literatura detetivesca

Em romance lançado recentemente no País, Ricardo Piglia propõe diálogo com outros grandes autores, como Hudson, Quiroga e Poe

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Por Wilson Alves-Bezerra
Atualização:

O escritor argentino Ricardo Piglia (1940) oferece ao leitor um romance sobre a sociedade norte-americana. Após ter trabalhado como professor visitante ao longo das últimas décadas em diversas universidade estadunidense – trajetória comum a muitos intelectuais latino-americanos – ao fim de sua carreira, o escritor diz ter tomado como ponto de partida seus diários pessoais para elaborar O Caminho de Ida, lançado este ano pela Companhia das Letras.

O escritor Ricardo Piglia lançou, este ano, o romance "O Caminho de Ida" Foto: Jorge Silva/Reuters

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O argumento é simples: um professor argentino de literatura, recém-divorciado, é chamado a trabalhar como ‘visiting professor’ na Taylor University. Nos EUA, convive ao longo do semestre acadêmico com alunos de doutorado, colegas de departamento, uma vizinha russa especialista em Tolstoi, um morador de rua, a ex-editora, seu ex-marido detetive, entre outros. E também lá vê sua nova amante morrer num acidente sob circunstâncias estranhas: sentada sozinha no banco do carro, pólvora nas mãos e ninguém para contar a história.

Na literatura recente do continente, o entrecruzamento entre o mundo das letras e a literatura detetivesca foi praticado com felicidade pelo chileno Roberto Bolaño (1953-2003), em 2666, Os Detetives Selvagens, As Agruras do Verdadeiro Tira, entre outros. A morte misteriosa envolta em uma atmosfera paranoica e com o envolvimento de grupos ecologistas foi objeto do romance Pele e Osso (2006), do contemporâneo e amigo de Piglia, Luis Guzmán (1944), que também vem praticando a articulação tão cara a ambos entre literatura e história, em livros como Hotel Éden, Nem morto você perdeu o seu nome e Villa. 

Onde então reside a singularidade do novo romance de Piglia? Em primeiro lugar, o livro propõe diálogos com escritores de ambas latitudes: Hudson, Quiroga e Poe – todos têm em comum a condição de desarraigo, o gosto pelo isolamento, que serão características de personagens importantes na trama. Entretanto, há mais. Se nos detivermos em Poe, veremos que para além da citação de O Corvo – seu célebre poema – está presente o gênero que o poeta criou: a literatura policial.

É nesse ponto em que o ensaísta e o romancista Piglia se encontram: em seu ensaio Leitores imaginários, do livro O Último Leitor (2006), ele diz que as histórias de detetive surgem na literatura de Poe em paralelo ao advento da cidade. A ideia é de Walter Benjamin: a possibilidade de o homem mover-se incógnito na massa possibilita o crime e, no limite, a literatura policial. Assim, contos tão diferentes como O Homem na Multidão (1840) e Os Crimes da Rua Morgue (1841), de Poe, dariam conta de que tal personagem move-se pela massa compacta dos homens, sem se confundir com ela: “A lucidez do detetive depende de seu lugar policial: é marginal, está isolado, é um extravagante” (p. 77)

O pulo do gato de Piglia está em notar que a época da mutação do flaneur em detetive é a mesma que Foucault atribui ao início da sociedade da vigilância: 1840. Nesse sentido, O Caminho de Ida, mostra a impossibilidade do detetive numa sociedade em que o pan-óptico predomina. Contrariando ponto a ponto as condições do detetive literário do século 19, Parker, o detetive da trama de Piglia, é usado para que o narrador fale sobre sua inutilidade. Pessoalmente é abstêmio (toma suco de laranja), ciumento (“sabia tanto sobre todo mundo que vivia atacado de ciúme e de desconfiança generalizada” (p.29)), desconsiderado pelas mulheres (“O senhor é o primeiro detetive que eu conheço, disse-me, pensei que já não existissem. Nos romances, costumam ser mais altos” (p. 206) e trabalha para uma ONG. Assim, a conclusão só poderia ser: “Nós, detetives, já não resolvemos os casos, mas podemos contá-los” (p. 152)

Curiosamente, Rienzi, o protagonista, quando procura ajuda deste profissional é muito mais para saber sobre si mesmo do que sobre o crime. Ele quer saber se não enlouqueceu, se não é mesmo o culpado. “Precisava saber o que estava acontecendo comigo.” (p. 96) parece muito mais uma frase de quem vai procurar um psicanalista do que um detetive. 

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A dúvida sobre si mesmo e a própria sanidade, eis o mote do romance. Inseridos em uma sociedade paraneica, cada personagem vive a partir de “séries sucessivas”; como se tivessem vidas não duplas, mas múltiplas: os diversos campos da experiência não se comunicam. A vida sexual não se confunde com a social que não se confunde com a acadêmica e assim por diante; parece ser a forma de fugir ao controle estrito do grupo. Tal ideia, disseminada ao longo do romance, reflete-se em sua própria estrutura: o protagonista ocupa, nos sucessivos capítulos, os papéis de professor, amante, suspeito e detetive. Isso em algum momento pode causar espécie ao leitor, pois o próprio desenrolar da narrativa vai sofrendo mutações radicais, e são estes papéis os que dominam o tema do respectivo capítulo. 

Uma possibilidade de leitura é retomar o que dizia Piglia, ainda nos anos 70, na Argentina, sobre o livro de estreia de Luis Guzmán, O Vidrinho: “é um romance policial onde o assassino, a vítima, o detetive e o narrador são a mesma pessoa”. Em O Caminho de Ida, tudo parece emanar de Rienzi, como num delírio, embora contado de modo apolíneo: há um contínuo entre sua voz e a do terrorista Munk, que por sua vez se deixa ler nos interstícios de um livro de Conrad, grifado pela amante morta de Rienzi.

A diferença entre o que se escrevia nos anos 70 – tanto Piglia quanto Guzmán – e os últimos romances que ambos os escritores publicaram mostra uma trajetória precisa: questões semelhantes se enunciavam com uma escritura desafiadora voltaram a surgir num estilo mais clássico e contido; uma economia de meios que vem se depurando ao longo de pelo menos 40 anos. No caso de O Caminho de Ida, um romance de leitura tão fluente e que propõe perguntas tão instigantes merece ser lido, para dizer o mínimo.

Wilson Alves-Bezerra é professor do Departamento de Letras da UFSCar

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