PUBLICIDADE

Um romance pelo avesso

Cem anos depois, estamos diante de mais uma das importantes reflexões de Machado de Assis sobre o papel do escritor e do intelectual entre nós

Por Beatriz Resende
Atualização:

Na advertência que antecede o romance Esaú e Jacó (1904) afirma-se que "quando o Conselheiro Aires faleceu, acharam-lhe na secretária sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão" e o último dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso (trata-se de Esaú e Jacó), "era uma narrativa". Sobre a escritura dos outros volumes, está dito aí que o conselheiro "nos lazeres do ofício escrevia o Memorial que, apesar das páginas mortas ou obscuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis". Antes mesmo de nos debruçarmos na leitura de Memorial de Aires, fica o aviso de que, se apenas o último dos volumes, aquele de maior número de páginas, era uma "narrativa", este que nos ocupamos, não é. Primeira negativa, de várias outras, que construirão o romance.    E no início, o teatro  Corpo de pedra sem nenhum rosto  'As casas de Machado não tinham jardim'  Concisão com HQ e cordel  Diário da loucura  Os críticos versus o enigma  O pai da prosa brasileira  Um escritor saudosista   Do Memorial, a parte relativa aos anos de 1888 (janeiro) a 1889 (agosto) é a que será considerada de possível interesse "apesar da forma de diário que tem". É o que diz a advertência, agora a do Memorial de Aires, assinada desta vez por M. de A., iniciais de Machado de Assis, idênticas às do próprio título do romance. A advertência conclui: "Vai como estava, mas desbastada e estreita, conservando só o que liga mesmo o assunto. O resto aparecerá um dia, se aparecer algum dia."   Estamos, pois, diante de uma proposta, digamos, minimalista, que nos deixará, até o final, na interrogação do que seria este "resto", o que o autor não entrega ao leitor seu contemporâneo e que acabará por se tornar o maior legado de Machado de Assis à crítica que sobre a genialidade de seus escritos vai debruçar-se nos séculos seguintes. Por se tratar de um diário, imperam os intervalos, os espaços entre os registros de cada dia, de cada momento escolhido e o que o segue. Num diário, a narrativa é arbitrária, a ordem dos fatos pode ser voluntariamente alterada. É o escriba quem arbitra sobre o que lhe interessa registrar, assim como ao autor/confidente cabe decidir se o texto deve ou não sobrevivê-lo. A fidelidade do diário deve estar na desobediência, na garantia de que o não-dito continuará desconhecido: "Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. (...) pode acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas."   O descompromisso do texto construído com fatos que poderiam organizar-se no narrado fica flagrante quando o romance do romance, a relação amorosa entre Tristão e Fidélia, esquenta. É aí mesmo que aumentam os intervalos. Se estivéssemos ansiosos à espera de desenlaces, teríamos de nos armar de paciência. Pouco é dito e o romance fica praticamente surrupiado ao leitor. Evidencia-se, mais ainda, a intencionalidade e a importância dos espaços em branco, do não-dito.   Marguerite Duras, a propósito de Georges Bataille, diz, com admiração, algo que talvez também se aplicasse à própria escrita e que aqui também nos serve: "(Bataille) inventa o modo como, escrevendo, pode-se não escrever. Anula nossos conhecimentos de literatura." E mais adiante, "Como é possível não escrever a esse ponto?"   RECUSA O romance vai-se constituindo pelo que aí não é dito, o que recusa, o que não cumpre.   1. Recusa a forma tradicional do romance em sua característica maior, que é a de uma narrativa em continuidade.   2. Não desenvolve um argumento. A história contada é banal, simples, cotidiana.   3. Não são esculpidos perfis, o que acontece em outros romances machadianos. O senso comum impera entre esses caracteres, que antes não são do que são. Fidélia não permanece fiel a sua viuvez, os velhos que só querem ter filhos não são pais, o conselheiro, diplomata, homem de política, não faz política, está retirado da vida pública.   4. Este homem público, segundo ele mesmo, "não representou papel eminente neste mundo". É homem de recusas, das abstenções. É aposentado: da carreira, da política, do Eros.   5. Finalmente, recortando um espaço e tempo históricos definidos, anos decisivos de nossa história, 1888 e 1889, o autor pouco se detém nos fatos históricos, como a Abolição da Escravatura, e dá-se ao luxo de interromper a narrativa em agosto de 1889, indiferente à República proclamada em novembro.   Mas se tomarmos o texto com atenção, se o virarmos pelo avesso, veremos que mais do que a história narrada ou eventuais referências, são justamente suas costuras que nos fascinam. Em Esaú e Jacó, o conselheiro já dissera: "Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e aço do outro." Antes da chegada do prêt-à-porter e, mais tarde, do prêt-à-jeter, o valor de um relógio (lembrando da metáfora do relojoeiro, tão cara ao nosso autor) era mostrado por seu interior, a qualidade de uma roupa por suas costuras, o precioso de um bordado por seu avesso. Aqui, o avesso revela as possibilidades de apresentação do próprio ficcional, do "ato de fingir", como diz Wolfgang Iser.   Para quem espera do romance relatos dos fatos do ano de 1888, o laconismo dos registros de 13 e 14 de maio surpreende. É o famoso trecho sobre a Abolição da Escravatura: "Enfim lei. (...) Ainda bem que acabamos com isso. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não podemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia." Em seguida, aparece o pseudo-registro do dia seguinte: "Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular. Saí agora do Flamengo fazendo essa reflexão, e vim escrevê-la."   O aspecto ficcional (o fingir) se revela duplamente: Memorial de Aires é um romance que finge ser diário, no qual o autor simplesmente registra fatos num espaço - o do diário - habitualmente tido como o do não-fingimento. A um diário confiamos nossas mais profundas verdades, é o espaço privado daquilo que podemos perceber como verdadeiro em nós mesmos. O jogo real-ficção se dá, pois, duplamente, revelando-se o contrato entre autor e leitor.   É evidente que esse esplêndido romance é também pleno de intenções explícitas. Machado, o escritor que não recusou, na vida pública, tarefas próprias ao intelectual, dentre elas a de influir na vida cultural do País. É do papel do homem de idéias que fala em seu discurso inaugural da Academia Brasileira de Letras, ao propor à agremiação a tarefa de conservar, no meio da federação política, a unidade literária. "Caber-lhe-á então defendê-la daquilo que não venha de fontes legítimas - o povo e os escritores -, não confundindo moda, que perece, com o moderno, que vivifica. Guardar não é impor." Em seu último romance fala com agudeza do modelo de intelectual que desaparece e do que surge com a república militar que se inicia.   PALAVRA O conselheiro que escreve o Memorial, o observador, o crítico, o que registra, é um intelectual que olha seu tempo. Mas este Aires é o homem público que, retirado para o universo privado, se preocupa em manter separados esses dois mundos. Para escrever sobre seu momento, retira-se dele. Pela carreira desistiu da música. Agora, afastado da vida pública, volta, de alguma forma, às artes pela escrita. A diplomacia lhe exigira neutralidade política, afastamento de interesses próprios, discrição. Apenas a aposentadoria lhe devolverá a palavra, o dizer além do escutar.   Esse último intelectual imperial em tudo e por tudo se opõe ao jovem deputado Tristão. Tristão não separa o público do privado, entra na vida pública por um arranjo, faz discursos e os faz bem, escreve em jornais, não inteiramente mal, toca piano com arte, arrebata Fidélia. É evidente que Aires não poupa reservas ao jovem. Os defeitos de Tristão, porém, aparecem como defeitos do próprio momento, da sociedade em que ambos se mexem, um optando por retirar-se dela, outro por nela ingressar. "Talvez ele tenha alguma dissimulação, além de outros defeitos da sociedade, mas neste mundo a imperfeição é coisa preciosa."   Cem anos depois, estamos diante de mais uma das importantes reflexões de Machado de Assis sobre o papel do escritor e do intelectual entre nós e não resta muita dúvida de que Tristão, intelectual emergente da Primeira República, veio para ficar.   Autora de Contemporâneos, Beatriz Resende é professora da UniRio e pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (UFRJ)

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.