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Coluna semanal da jornalista Maria Fernanda Rodrigues com dicas de leitura

Opinião|Um livro por semana: Quase memória ('Os Anos Mais Antigos do Passado')

Livro reúne 'crônicas afetivas' de Carlos Heitor Cony publicadas na imprensa

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Foto do author Maria Fernanda Rodrigues
Atualização:

Fazia tempo que eu não lia Cony. E não sei se foi o domingo de Páscoa, a saudade dos encontros de um tempo que virou história e memória, mas reli Os Anos Mais Antigos do Passado. 

Lançado pela Record em 1998 e ainda encontrado em livraria e sebo, o livro traz 102 crônicas que Carlos Heitor Cony (1926-2018) publicou na imprensa em diferentes épocas. Elas nos levam a um tempo em que passavam o leiteiro, o amolador de faca e o sorveteiro, em que se parava para ouvir um estranho na rua. Ao tempo do bonde e das coisas que não voltam mais. O seu tempo de menino. 

Muitas das crônicas remetem à memória de um Rio de Janeiro de outros tempos Foto: Arquivo Estadão

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As questões que ele revisita são, ele diz, “fantasmas antigos” que teimam em assombrá-lo. “Dou-lhes a oportunidade de um instante a mais. Em paga, que eles me tragam remorsos de menos.”

Há textos sobre viagens, música, filmes e política. Reminiscências que nos mostram, também, um outro País, um outro Rio de Janeiro. Textos sobre pessoas e cães - como Mila, em que ele escreve sobre sua companheira ao longo de 13 anos que parte deixando a cria, Títi, que também morre. 

É tudo sobre despedidas, saudades, reencontros impossíveis. Sempre gostei de O Menino das Meias Vermelhas, sobre uma criança que quer ser encontrada por sua mãe, que foi embora.

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Tem outro, O Primeiro Jornal. Nele, Cony conta que tinha a mania de chegar uma hora antes de qualquer compromisso e naquele dia, sobre o qual escreve, ficou rondando um quarteirão na região da Praça Mauá, no Rio. Diz que evitava, na vida, algumas palavras, como desolação - mas que diante daquela situação era só a que ele podia usar. 

Andou por ali tentando reconhecer o prédio onde ficava a redação da Gazeta de Notícias, o primeiro jornal em que trabalhou - e por onde passaram nomes como Olavo Bilac e José do Patrocínio. O jornal já não existia mais havia anos. Mas “pior que o desaparecimento do jornal foi o desaparecimento do seu prédio, que nem sequer caiu ou foi demolido: simplesmente não pode ser reconhecido”. Foi pensando nisso que ele se perguntou: “Se acaso eu esbarrasse com o rapaz que fui àquela época, eu o reconheceria? E o pior, ele me reconheceria?”.

Entre uma ou outra reflexão sobre nossa decadência, entre sonhos e retratos de um país mais gentil e imperfeito, Cony escreve até sobre o vizinho que anunciava todas as noites de sua infância que o mundo acabaria no dia seguinte. E o escritor constataria mais tarde: “Mundo que acabou realmente, e nem saiu no jornal”. 

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