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Svetlana Alexiévich é a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015

Jornalista e escritora bielorrussa era a favorita deste ano nas casas de apostas; ela é a 14ª mulher a vencer o prêmio

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Por Redação
Atualização:

Atualizado às 21h

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PARIS- A literatura russa, que legou à cultura mundial alguns de seus maiores clássicos, escreveu nesta quinta-feira, 8, mais uma página da história da arte. Svetlana Alexievitch se tornou a primeira mulher de língua russa a receber o prêmio Nobel de Literatura, ingressando em um panteão que já destacou Boris Pasternak, em 1958, Alexander Soljenitsyn, em 1970, e Joseph Brodsky, em 1987. Jornalista e escritora engajada, deu voz às vítimas diretas e colaterais das guerras e das perseguições das eras soviética e pós-soviética, abrindo espaço ao testemunho dos anônimos.

 

O anúncio da premiação foi realizado nesta quinta-feira pela Academia Sueca, que prestou a homenagem “por seus escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e coragem em nosso tempo”. Nascida no leste da Ucrânia, na extinta União Soviética, em 1948, e filha de professores - seu pai era historiador -, Svetlana cresceu em um território que serviu de teatro à Frente do Leste, a guerra entre Alemanha de Adolf Hitler e a União Soviética de Joseph Stalin, um dos capítulos mais sanguinários não só da 2ª Guerra Mundial, mas da história da humanidade.

Depois de integrar os komsomols, a “Juventude Comunista”, Svetlana mudou-se para Minsk, em Belarus, antiga Bielo-Rússia, onde estudou jornalismo. A partir de então, começou a colher e publicar os testemunhos daquilo que os críticos definiram como “história emocional” da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), de sua queda e da reconstrução dos países que compunham o bloco. Ao longo de sua obra, estão temas recorrentes como a denúncia da guerra, da violência e da propaganda de Estado de Moscou e da potência comunista que desabaria em 26 de dezembro 1991.

Em seus seis livros, escritos em tom documental, sem ficção, estão registradas as repercussões da 2ª Guerra Mundial e da guerra patrocinada pela União Soviética no Afeganistão, mas também o declínio e a queda do bloco comunista e o desastre da usina de energia nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986.

Svetlana Alexievitch Foto: AFP PHOTO / MAXIM MALINOVSKY

Seu espírito de denúncia ficou claro desde seu livro de estreia, A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, de 1985, quando reuniu depoimentos de sobreviventes dos teatros da 2ª Guerra Mundial, mas sem glorificações. Homens, mulheres, soldados ou não, têm rostos humanos e sofrimentos reais, o que lhe valeu acusações de traição à pátria por líderes políticos soviéticos da época. 

Sua obra, aliás, só resistiu à ditadura por decisão do líder reformista Mikhail Gorbachev, artífice da abertura soviética por meio dos movimentos Perestroika (Reconstrução) e Glasnost (Transparência) e da distensão com o Ocidente. Foi Gorbachev à época quem decidiu não censurar o texto, que se transformou em imenso sucesso de público na União Soviética.

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Em Os Caixões de Zinco (1989), sobre a guerra do Afeganistão, as sanções foram mais duras, e Svetlana conheceu então o exílio na Europa. Seu livro seguinte, A Súplica - Chernobyl, Crônicas do Mundo Depois do Apocalipse, veio a público em 1996, já como sucesso internacional, traduzido em 17 línguas. Seguiram-se ainda Enfeitiçados pela Morte e Últimas Testemunhas, obra-prima sobre o relato da 2ª Guerra pelas crianças que a assistiram. Por seu último livro, o ensaio O Fim do Homem Vermelho ou o Tempo do Desencantamento, Svetlana alcançou o auge de sua repercussão internacional antes do Nobel, recebendo na França, por exemplo, os títulos do prêmio Médicis de 2013 e o de Melhor Livro do Ano da revista literária Lire. 

Nessa obra, a autora esquadrinhou a ambiguidade dos sentimentos do “homo sovieticus” sobre a queda do bloco comunista e as repercussões pessoais, familiares e sociais das transformações vividas na região com a abertura econômica. 

Sobre seus textos, Svetlana tem sublinhado o papel da coleta do testemunho na construção da narrativa real, mas costuma recusar os rótulos de jornalista ou de historiadora. “Eu não procuro produzir um documento, mas esculpir a imagem de uma época. Não fico ao nível da informação, mas exploro a vida das pessoas, o que elas compreenderam da existência”, afirmou nesta quinta-feira, 8. “Tudo começa para mim no mesmo lugar no qual se termina a tarefa dos historiadores: o que acontece na cabeça das pessoas após a batalha de Stalingrado, ou após a explosão de Chernobyl? Eu não escrevo a história dos fatos, mas a história das almas.”

Nos últimos anos, o ativismo da autora tem lançado luzes sobre a nova relação dos ex-soviéticos com o capitalismo, com a decadência cultural e também com a política, sublinhando a emergência de um sentimento nostálgico em relação à URSS, a popularidade de Stalin em certos círculos sociais e o esquecimento de Gorbachev.

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Coerente com sua trajetória, Svetlana é oposicionista ferrenha do regime de Alexander Lukachenko, eleito à presidência em 1994 e, desde então, no poder - o que lhe vale a alcunha de “o último ditador da Europa”. Sua visão crítica de Belarus a leva com regularidade a buscar exílio na Europa Ocidental, em países como Itália, França, Alemanha e Suécia. Nesta quinta-feira, 8, mesmo tendo retornado a Misnk, Svetlana voltou a atacar o tirano em entrevista ao jornal Svenska Dagbladet. “Ele será obrigado a me escutar”, comemorou, referindo-se ao Nobel. “Há tantas pessoas cansadas que não fazem mais força para crer… O prêmio pode significar algo para eles.”

Também crítica do presidente da Rússia, Vladimir Putin, a escritora aproveitou a exposição internacional para ressaltar seu apego à cultura russa, mas não a seus governantes. “Eu amo o mundo russo, bom e humanista, diante do qual o mundo se inclina: o do balé, da música, mas não o de Stalin e Putin.” 

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ANÁLISE: Valeri Kalinovski / AFP

Autora firmou-se como cronista implacável do império soviético

 

A bielo-russa Svetlana Alexievich retrata o império soviético de Chernobyl ao Afeganistão em livros ausentes das livrarias do seu país, que não perdoa sua visão do “homo sovieticus”, incapaz de ser livre. A obra dessa jornalista de 67 anos é rica em depoimentos obtidos com paciência no decorrer dos anos.

O fim do homem vermelho ou a era do desencanto, um retrato do “homo sovieticus" sem concessões, ainda que cheio de compaixão, mais de 20 anos após a implosão do império, recebeu em 2013 o prêmio Medicis de melhor ensaio na França.

“Conheço bem o ‘homem vermelho’: sou eu, as pessoas que me cercam, meus pais”, explicou, em certa ocasião. “Ele não desapareceu. E o adeus será muito demorado.”

Por isso, ela sente “respeito” pelos ucranianos que, com seus protestos, expulsaram do poder o ex-presidente Viktor Yanukovich, aliado à Rússia, em 2014. “Hoje, a Ucrânia é o modelo para todos. Seu desejo de romper por completo com o passado é digno de respeito”, opinou a respeito do país dilacerado pelo conflito entre separatistas aliados à Rússia e as forças ucranianas. “Acredito que o império ainda não desapareceu. E, pessoalmente, tenho a inquietante sensação de que não desaparecerá sem derramamento de sangue.”

Svetlana trabalhou durante os anos 1970 na seção de cartas do Selskaya Gazeta, jornal das fazendas coletivas soviéticas. Foi naquela época que ela começou a registrar com o gravador os relatos de mulheres que combateram na 2ª Guerra Mundial. Foram a inspiração do seu primeiro romance: A Guerra Não Tem Rosto de Mulher. “Tudo que sabíamos da guerra foi contado pelos homens. Por que as mulheres que suportaram esse mundo absolutamente masculino não defenderam sua história, suas palavras e seus sentimentos?”, indaga-se.

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Foi acusada de “romper a imagem heroica da mulher soviética” e seu livro teve de esperar a Perestroika para ser publicado em 1985. Com o título, ganhou fama em toda a União Soviética e no exterior.

Desde então, recorreu sempre ao mesmo método para seus romances documentais, entrevistando durante anos pessoas com experiências dramáticas: soldados soviéticos voltando da guerra no Afeganistão (Caixões de Zinco) ou suicidas (Enfeitiçados pela Morte). “Vivemos entre carrascos e vítimas. Os carrascos são difíceis de encontrar. As vítimas são nossa sociedade, e são muito numerosas”, declarou Svetlana, a respeito dos protagonistas dos livros. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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