'Cinema Explícito' analisa a fronteira entre o erótico e o pornográfico

Cientista social Rodrigo Gerace faz análise profunda sobre o tema nas telonas

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Com a profusão de cenas de sexo no cinema atual, até surpreende a raridade com que o tema é abordado pelos ensaístas do mundo acadêmico. O livro Cinema Explícito, do cientista social paulistano Rodrigo Gerace, que será lançado dia 25, no Cinesesc, fura esse bloqueio e vai além do que foi mostrado em filmes como Azul É a Cor Mais Quente e Ninfomaníaca. O primeiro chegou a ser censurado por uma empresa de Blu-Ray, que se recusou a gravar o vencedor da Palma de Ouro de 2013, dirigido pelo franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, classificando seu conteúdo de “impróprio”. Afinal, o que diferencia um filme erótico de um filme pornográfico? Vale o sexo implícito, mas não o explícito? Seriam esses filmes obscenos?

Gerace viu mais de mil filmes antes de responder a questões como essa. Correu a Europa atrás de museus, viu obras que raramente circulam no circuito, pesquisou acervos de colecionadores particulares e, principalmente, leu muito Foucault antes de concluir, como ele, que a modernidade burguesa é marcada pela regulamentação da sexualidade. Reprimir e normatizar o sexo sempre foram os principais exercícios do poder. Contra ele, ensaístas como Susan Sontag se insurgiram. Eles partiram em defesa de obras consideradas obscenas como Flaming Creatures (Criaturas Flamejantes, 1963), que, ao estrear, provocou barulho pela multidão de travestis e hermafroditas que circulava pelo média-metragem, saudado por Sontag, num ensaio de 1966, como uma “rara obra de arte moderna sobre alegria e inocência”.

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Outra pioneira no estudo da pornografia, Lynn Hunt, é igualmente uma referência de Gerace, que analisa em seu livro tanto os filmes que provocaram escândalo na época de seu lançamento – Último Tango em Paris (1972), de Bertolucci – como os primeiros filmes mudos eróticos, chegando ao século 21 – O Pornógrafo (2001), de Bertrand Bonello, e 29 Palmos (2003) de Bruno Dumont.

Citando Lynn Hunt, Gerace lembra que nem toda imagem de sexo é obscena em si mesma, concluindo, como Susan Sontag, que “o obsceno é uma convenção, ficção imposta sobre a natureza por uma sociedade convicta de que há algo vil nas funções sexuais”. Para demonstrar que concorda mesmo com as duas, ele até programou para o lançamento de seu livro dois filmes que colocam em discussão a fronteira entre erotismo e pornografia pelo alto grau de transgressão de seu conteúdo: Garganta Profunda e W.R. – Os Mistérios do Organismo.

“Lynn Hunt foi pioneira, ao refletir sobre o orgasmo feminino como epicentro dramático de Garganta Profunda, o filme de Gerard Damiano”, lembra. Classificado de pornográfico ao ser lançado, em 1973, por causa das cenas de sexo oral de Linda Lovelace, poucos foram os ensaístas que viram no filme um manifesto feminista. André Bazin, o respeitado teórico francês, dizia que uma imagem intensa – seja de sexo ou de morte, o que vem a dar no mesmo – traz uma obscenidade intrínseca. Para ele, o ato sexual nunca seria interpretado de forma realista. Nagisa Oshima teria de matar para valer o homem de O Império dos Sentidos para atingir essa dimensão explícita.

Quando O Império dos Sentidos foi lançado, em 1976, a fronteira simbólica do pornográfico e do erótico já era quase imperceptível. O diretor japonês Nagisa Oshima diminuiu ainda mais essa distância ao filmar um caso real, acontecido em 1936, o de uma prostituta que castra o amante e o estrangula até a morte. O cineasta, nota Gerace, fetichiza o falo (como o fazia a prostituta real) em longas tomadas do pênis, até sua total impotência. “A recontextualização do obsceno no filme é elencada por meio de imagens do ato sexual explícito, ou seja, por meio da inserção do pornográfico em meio ao contexto amoroso”, observa o autor, para o qual não existe distinção entre imagem erótica e pornográfica.

Cineasta que dedicou sua carreira à representação sexual, “flertando com o pornográfico” desde a época estudantil, o dinamarquês Lars von Trier ganha capítulo à parte no livro por uma razão especial: ele é tema de um segundo ensaio, sua tese de mestrado, que Gerace pretende lançar depois de Cinema Explícito, a tese de doutorado. O autor não considera Ninfomaníaca sua obra-prima, mas vê no dogmático cinema de Von Trier uma força vulcânica que denuncia o mal-estar da contemporaneidade.

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O Brasil não está ausente das páginas de Cinema Explícito, que chega a Praia do Futuro (2014), filme de Karin Aïnouz em que Wagner Moura aparece numa cena homoerótica com o ator alemão Clemens Schick, levando uma rede de cinemas a alertar o público, no ingresso, sobre o conteúdo homossexual do filme. “Sexo é sempre um fantasma”, reflete Gerace. “Ele vem à tona mesmo quando não é mostrado”, conclui. CINEMA EXPLÍCITOAutor: Rodrigo GeraceEditora: Sesc Edições e Perspectiva (320 págs.,R$ 72)

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