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Revelação das letras americanas, Ottessa Moshfegh e seus livros não têm nada de convencional

Romance apresenta personagens pouco ortodoxos, muitos remédios controlados e a Nova York pré-11/9

Por Guilherme Sobota
Atualização:

Nada na história de Ottessa Moshfegh é convencional. Seu pai é um violinista iraniano e judeu que tocou na Europa e Ásia antes de voltar ao Irã e ser convidado a se retirar pelo novo regime islâmico. Sua mãe, croata, também estudou violino e se mudou com o marido para os EUA, na região de Boston, onde Ottessa e seus irmãos nasceram e foram criados.

Desde a sua formatura na faculdade Barnard, em 2002, Ottessa está sempre em movimento: uma de suas primeiras paradas foi Wuhan, China (onde estudou inglês e trabalhou num bar punk), depois Nova York (onde iniciou sua aproximação com o mercado editorial), depois a universidade Brown, em Rhode Island (onde fez mestrado de escrita criativa e escreveu sua primeira novela, mais tarde premiada). Passou ainda por Oakland antes de se instalar em Los Angeles, onde, em uma entrevista que durou 27 dias, conheceu seu apaixonado marido, um escritor chamado Luke Goebel.

Ottessa Moshfegh, autora norte-americana, lança o livro 'Meu Nome Era Eileen', pela editora Todavia Foto: Krystal Griffiths

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Seus trabalhos foram aparecendo nos últimos cinco anos. Eileen, o primeiro romance, foi finalista do Man Booker Prize em 2016 – o trato da protagonista com o próprio corpo e sexualidade causou espanto. “Eles queriam que eu explicasse como tive a audácia de escrever uma personagem feminina nojenta”, disse a escritora. Dois anos depois, em 2018, chegou às prateleiras o livro agora lançado no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Juliana Cunha: Meu Ano de Descanso e Relaxamento.

O romance acompanha uma funcionária de galeria de arte de 26 anos que decide “hibernar”: dinheiro não é problema e seu apartamento no Upper East Side, na Nova York de junho de 2000, é o local perfeito. Ela tem uma amiga, Reva, com quem é repetidamente cruel (“Eu já gostei da Reva, mas não gostava mais”), e conversa frequentemente com sua psiquiatra, a dra. Tuttle: “Ela não era uma boa médica. Achei seu número na lista telefônica”, diz a personagem – mas seus relacionamentos param por aí. É da caneta da médica que saem as receitas dos remédios, eles mesmos outro personagem.

Embora admita que não reconhecia “nada que justificasse sua decisão de hibernar”, a personagem se engaja então numa missão de passar a maior parte do tempo envolta numa nuvem provocada por pílulas de Stilnox, Nembutal, Donaren, Seconal, Valium, Buspirona, Lorax, Gardenal, Frontal, lítio – acredite, a lista continua por vários nomes até chegar a uma substância chamada Infermiterol, e falar mais é estragar parte da surpresa. Dona de uma voz narrativa praticamente palpável, Ottessa é reconhecida como uma das vozes mais interessantes da literatura americana.

Por e-mail, a escritora respondeu às seguintes perguntas.

Por que você decidiu ambientar o romance em uma era praticamente pré-internet?

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A minha decisão de estabelecer o romance em 2000 e 2001 tem menos a ver com meu desgosto pelas redes sociais do que com a enorme impressão que o 11 de setembro teve em mim como uma pessoa jovem lutando para ter uma noção da realidade... Mas eu realmente acho que o autoisolamento é uma história diferente com internet de alta velocidade e Amazon e Instagram e serviços de entrega de comida. A protagonista no romance tem uma conta da AOL e pede roupas pela internet. Mas ele prefere ser ludista com sua coleção de fitas VHS. Ela não quer estar “conectada” e eu consigo entender esse impulso.

Você se inspirou em romances sobre drogas? Personagens usando drogas “tradicionais” na ficção aparecem o tempo todo, mas não lembro outro personagem com tantas pílulas.

Sou fã dos romances de Charles Bukowski porque eles falam de maneira muito transparente sobre um ego tentando defender seu tamanho através de quantidades massivas de álcool e drama. Mas prefiro narrativas de drogas no cinema e na TV.

O romance é ambientado em período em que o vício em opioides já estava crescendo a taxas preocupantes nos Estados Unidos. Você pensou sobre isso também? Você sente necessidade de se engajar em grandes temas?

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A crise dos opioides não chegou de fato ao mainstream até alguns anos atrás nos Estados Unidos, de verdade. Não estive pensando nisso de maneira nenhuma enquanto escrevia o livro – eu costumo me engajar em temas num nível institucional, mais do que em um claramente político. Sou grata, é claro, que o meu livro possa alargar um entendimento dos perigos da indústria farmacêutica e do que a move. Estou agora escrevendo um livro para o qual eu tive de pesquisar muito sobre a história do ópio, então isso é algo que me preocupa muito, mas não quero que meu trabalho faça papel de advocacia. Talvez isso me faça uma covarde, mas não me sinto assim.

Talvez seja justo dizer que a protagonista do livro é cruel mas acessível. Ela diz coisas horríveis, mas também possui essa qualidade sarcástica que as pessoas podem realmente gostar (penso em Holden Caulfield ou Don Draper, homens de outros tempos). Como o fato de a personagem ser mulher pode mudar essa percepção?

Hum, não sei. Acho que todo mundo sabe que mulheres podem ser tão cruéis quanto os homens. Então não acho que esteja desbravando novos caminhos aqui. Mas talvez o que pode ser novo seja levar a sério a jornada espiritual e emocional de uma pessoa através da autodestruição. E frequentemente atribuímos esse tipo de sofrimento a homens.

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A dra. Tuttle é médica, mas não opera de maneira lógica. Essa é uma qualidade perfeita para um personagem de ficção, mas também é um aspecto que aparenta aparecer mais e mais na vida real, você concorda?

A razoabilidade pode começar a parecer meio arbitrária quando você olha para o desenvolvimento do pensamento humano ao longo da história e do planeta. A insanidade frequentemente aparece como bom senso. E vice-versa. Acho que a insanidade real desses dias é a nossa implacável necessidade de ter fé na autoridade humana. As pessoas falam sobre cultos como se fosse algum tipo de perversão social, mas funcionam quase da mesma forma que qualquer grupo autoidentificado na cultura mainstream. Então, de uma forma, eu admiro a liberdade da dra. Tuttle para seguir o seu próprio compasso, e admiro a decisão da protagonista de tomar escolhas de vida a despeito da opinião geral. Isso não significa que eu perdoe receitar drogas para serem abusadas, ou perdoe o abuso de drogas. Realmente acho que a maior parte das pessoas ricas faz o que quer, e eles encontram as pessoas que as ajudam a fazê-lo, especialmente numa cidade tão grande como Nova York. Eu estava interessada nessa história, mais do que em uma moralizadora.

O que mudou na sua mentalidade como escritora de ficção depois da boa recepção do livro?

Quero me esforçar na direção de desafios mais sofisticados, e olhar para a narrativa de um jeito maior, em termos de “saga”. Também me sinto bem cansada do meu próprio sarcasmo. Acho que o esgotei. Estou mais interessada na beleza da sinceridade esses dias. Então essa é a minha convicção, mesmo que não seja o resultado final.

Nova York. Upper East Side é um dos cenários do livro Foto: Mike Segar/Reuters

Trecho de 'Meu Ano de Descanso e Relaxamento':

“Mas Trevor tinha um metro e noventa e três. Estava sempre limpo, em forma e confiante. Era um milhão de vezes melhor do que os nerds hipsters que eu via pela cidade e na galeria. Na faculdade, o departamento de história da arte estava infestado desses modelitos jovens do sexo masculino. Uma ‘alternativa’ em relação aos garotos das fraternidades, aos superinteligentes que entravam direto em medicina e aos franzinos, moleques meio intelectuais e sem o menor charme que dominavam os departamentos mais criativos. Como estudante de história da arte, eu não tinha como escapar deles. Caras chatos lendo Nietzsche no metrô, Proust, David Foster Wallace, anotando seus pensamentos brilhantes num moleskine preto. Barriga de cerveja, gambitos, moletom de zíper, casaco azul-marinho ou parca verde-exército, New Balance, gorro de tricô, bolsa de lona, mãos diminutas com dedos cabeludos, quem sabe uma cabeça de veado tatuada num bíceps sem tônus. Enrolavam seus próprios cigarros, não escovavam os dentes direito, gastavam cem dólares por semana em café. (...) Eles se ressentiam do sucesso alheio, queriam ser adorados, influentes, celebrados por seu gênio, achavam que mereciam ser alvo de admiração. A verdade, no entanto, é que mal conseguiam encarar o próprio reflexo no espelho.”

MEU ANO DE DESCANSO E RELAXAMENTO

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Autora: Ottessa Moshfegh

Tradutora: Juliana Cunha

Editora: Todavia (240 págs., R$ 54,90, R$ 32,90 o digital)

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