Em determinado trecho de Carta ao Pai, Kafka escreve algo impressionante. Diz que, de fato, o pai nunca o agredira fisicamente. Mas a pura ameaça, nunca concretizada, fazia efeito talvez ainda pior. Comparava: é como um condenado conduzido ao local de execução. Se vai até o fim, a morte acontece, e tudo acaba. Se ele vê a corda balançar diante de si, sente-a sendo passada pelo pescoço e, quando espera apenas morte, é perdoado, pode guardar aquele trauma para o resto da vida. Kafka era como um condenado que não morria, mas jamais era absolvido por completo.
Impossível não relacionar essa iminência do castigo com determinadas passagens da sua genial literatura. Daí Carta ao Pai ter sido interpretada não apenas como um desabafo e ajuste de contas com o tirano que tinha como progenitor, mas como expressão da matriz de alguns dos procedimentos literários. Marcas registradas de sua escrita e que seriam, portanto, devedoras das terríveis experiências de infância na convivência com Hermann Kafka, o pai.
No posfácio da edição brasileira (Companhia das Letras), o tradutor da obra, Modesto Carone, lembra que Kafka, ao escrever Carta ao Pai, tinha 36 anos e era já autor de livros que a posteridade consagraria, como Metamorfose. Era homem maduro e morreria cinco anos depois. No entanto, aquele ajuste com a figura paterna ficara incômodo, jamais adormecido. Expressava-se em literatura, disso Kafka era consciente. Escreve na Carta: “Meus escritos tratavam de você, neles expunha as queixas que não podia fazer no seu peito”. A frase é dolorosa. Mais uma demanda de amor que um racional acerto de contas retrospectivo.
Desse modo, a Carta, que jamais foi entregue ao seu destinatário e só mais tarde seria publicada na íntegra, ganhou importância nas tentativas de compreensão de obra tão fundamental do século 20.