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Reedição de 'Febeapá', de Sérgio Porto, confirma o talento do autor

Como Stanislaw Ponte Preta, ele satirizou a cretinice nacional

Foto do author Ubiratan Brasil
Por Ubiratan Brasil
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Crítico literário e pensador católico, Alceu Amoroso Lima não suportou a crescente onda de cretinice que se espalhava pelo País e desabafou: “A maior inflação nacional é de estupidez”. Isso foi em 1966, mas muito antes e certamente bem depois o cenário brasileiro jamais ficou livre (nem ficará) da quantidade de frases e gestos infelizes. Mas foi justamente esse farto material que inspirou um dos maiores cronistas brasileiros, Sérgio Porto (1923-1968) a exercitar seu fino humor. Foi sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta que ele começou a publicar o Febeapá - Festival de Besteiras Que Assola o País, que a Companhia das Letras, em feliz iniciativa, edita em volume único, lançado agora. Sérgio Porto era dono de um admirável senso de humor. Conhecedor de música popular brasileira, de cinema e de jazz, escrevia com precisão e elegância. Começou a escrever na imprensa em 1947, publicando em Folha do Povo, Sombra, Comício até chegar ao Diário Carioca no qual, depois de assinar a coluna de música, assumiu também a social, mas sob duas condições: tratar de assuntos além da frivolidade da alta burguesia e assiná-la com outro nome. O primeiro que lhe veio à cabeça foi Serafim Ponte Grande, em homenagem ao personagem criado por Oswald de Andrade, mas, ao receber um livro do autor com uma carinhosa dedicatória, Sérgio, receoso de magoá-lo, decidiu mudar.  O pseudônimo nasceu, então, da fusão das sugestões do editor Lúcio Rangel e do ilustrador e artista plástico Santa Rosa: Stanislaw Ponte Preta. “Eram almas gêmeas”, observa o crítico e cronista do Estado Sérgio Augusto, autor do prefácio. “Oswaldianamente irreverentes, folgazões, sem frescura, livres de qualquer parti pris ideológico, paladinos de todas as manifestações da cultura popular, mulherólogos, carioquíssimos. Abominavam os hipócritas, os racistas, os puxa-sacos, e não tinham em melhor conta o milico metido a machão, o burro metido a sabido e o intelectual metido a besta.”

Paladino. Inventário das tolices nacionais Foto: Reprodução

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Sob a assinatura de Stanislaw, Sergio, habitualmente mais contido, revelava uma escrita exuberante e, em seus ácidos comentários, não perdoou ninguém imerecidamente, combinando com maestria inteligência, comentários marotos e texto fluente. Criou também gírias que se tornaram populares, como “cocoroca”, “teatro rebolado” e “redentora”, para designar o golpe militar de 1964. Também inventou expressões que logo caíram na boca do povo, como “mais por fora que umbigo de vedete” e “mais por baixo que calcinha de náilon”. Com o apoio da fictícia Pretapress, agência de notícias fomentada pelos leitores, que se divertiam enviando recortes de jornal de todo o País, Stanislaw conseguia mapear a imensa quantidade de atos e palavras tolas que, de tão imbecis, eram hilariantes. Afinal, o que falar do comentário de Ibrahim Sued, papa do colunismo social e figura frequente do Febeapá, que, antes mesmo de iniciado o festival, estreava num programa de televisão e avisava ao público: “Estarei aqui diariamente às terças e quintas”?

FEBEAPÁAutor: Stanislaw Ponte PretaEditora: Companhia das Letras (488 págs.; R$ 54,90)TRECHO

Um time da Alemanha Oriental vinha disputar alguns jogos no Brasil e o Itamaraty distribuiu uma nota avisando que os alemães só jogariam se a partida não tivesse cunho político. "Cunho político" - explicaria depois o próprio Itamaraty - era tocar o hino nacional dos dois países que iriam jogar. Um dia eu vou contar isto aos meus netinhos e os garotos vão comentar: "Esse vovô inventa cada besteira!". 

Em Mariana (mg) um delegado de polícia proibiu casais de sentarem juntos na única praça namorável da cidade e baixou portaria dizendo que moça só poderia ir ao cinema com atestado dos pais. No mesmo estado, mas em Belo Horizonte, um outro delegado distribuía espiões da polícia pelas arquibancadas dos estádios porque "daqui para a frente quem disser mais de três palavrões, torcendo pelo seu clube, vai preso". 

Era o iv Centenário do Rio e, apesar da penúria, o governo da Guanabara ia oferecer à plebe ignara o maior bolo do mundo. Sugestão do poeta Carlos Drummond de Andrade, quando soube que o bolo ia ter cinco metros de altura, cinco toneladas, duzentos e cinquenta quilos de açúcar, quatro mil ovos e doze litros de rum: "Bota mais rum". O secretário de Segurança de Minas Gerais, um cavalheiro chamado José Monteiro de Castro - grande entusiasta do Festival de Besteira - proibia (já que fevereiro ia entrar) que mulher se apresentasse com pernas de fora em bailes carnavalescos "para impedir que apareçam fantasias que ofendam as Forças Armadas". Como se perna de mulher alguma vez na vida tivesse ofendido as armas de alguém! 

Já era fevereiro quando o diretor de Suprimento, em Brasí- lia, proibia a venda de vodca "para combater o comunismo". E Minas continuava fervendo: depois de aparecer um delegado em Ouro Preto que tentou proibir serenata; depois de aparecer um delegado em Mariana que proibiu namorar em jardim de praça pública; depois de aparecer um delegado em Belo Horizonte que proibia o beijo (mesmo em estação de trem na hora do trem partir); depois de aparecer, na mesma cidade, uma autoridade que não queria mulher de perna de fora no Carnaval, um juiz de menores proibia as alunas dos colégios de fazer ginástica "porque aula de educação física não é desfile de pernas". Mas impressionante mesmo foi o prefeito de Petrópolis, que baixou uma portaria ditando normas para banhos de mar à fantasia.  Eu escrevi prefeito de Petrópolis, cidade serrana do estado do Rio.

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Em Niterói - isto é até pecado, cruzes!!! -, numa feira de livros instalada na praça Martim Afonso, a polícia apreendeu vários exemplares da encíclica papal Mater et magistra, sob a alegação de que aquilo era material subversivo. Para representar o mês de março de 65 no Festival, isso é mais do que suficiente. 

Abril, mês que marcava o primeiro aniversário da "redentora", marcou também uma bruta espinafração do juiz Whitaker da Cunha no Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, que enviara seis ofícios ao magistrado e, em todos os seis, chamava-o de "meritríssimo". Na sua bronca o juiz dizia que "meritíssimo" vem de mérito e "meritríssimo" vem de uma coisa sem mérito nenhum.

Quando se desenhou a perspectiva de uma seca no interior cearense, as autoridades dirigiram uma circular aos prefeitos, solicitando informações sobre a situação local depois da passagem do equinócio. Um prefeito enviou a seguinte resposta à circular: "Dr. Equinócio ainda não passou por aqui. Se chegar será recebido como amigo, com foguetes, passeata e festas".

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