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'Preservar objetos é preservar imaginação', diz Nobel turco Orhan Pamuk

Escritor, que luta para manter acervo fundado por ele Istambul, participa de evento no Museu da Pessoa

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

Dividido entre seu trabalho como professor, em Nova York, e o hábito de dedicar dez horas de seu dia a escrever novas histórias, o turco Orhan Pamuk, ganhador do Nobel de Literatura em 2006, tem lutado para manter o Museu da Inocência, que fundou em Istambul, em 2014, com base num romance homônimo. Ele vem mobilizando pessoas, apesar das divergências que tem com a liderança política de seu país. 

O escritor turco vencedor do Nobel Orhan Pamuk posa com alguns artigos de seu romance 'O Museu da Inocência' em Istambul, em 27 de agosto de 2010. Foto: REUTERS/Murad Sezer

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Este ano, o autor de Neve e O Castelo Branco ainda ocupa parte de seu tempo com a carreira de Noites de Praga, romance ainda inédito por aqui, mas já lançado na Turquia. Escrito quatro anos antes da covid-19, o livro fala de uma peste do início do século 20. A aparente coincidência de tê-lo finalizado quando a pandemia do coronavírus começou fez com que Pamuk se manifestasse publicamente sobre uma trama idealizada sem conexões com uma das mais graves moléstias do nosso tempo.

Outra moléstia que ocupa sua mente é o sucateamento das recordações, dos acervos.

Esse foi o tema do colóquio que o escritor de 69 anos ministrou nesta quarta-feira, 17, no seminário Futuro da Memória. O evento está sendo organizado pelo Museu da Pessoa e segue até amanhã. “Preservar objetos é preservar imaginação”, diz Pamuk nesta entrevista via Zoom ao Estadão.

O escritor turco Orhan Pamuk, ganhador do Nobel de Literatura em 2006, em foto de 2010. Foto: REUTERS/Murad Sezer

Conceitualmente, onde é que uma biblioteca e um museu se assemelham na relação com o passado, com a memória? O que há de museológico em um romance?

Ambos preservam a experiência humana, só que um se atém a livros e outro dá conta de uma pluralidade de objetos, com outra diferença: a literatura conserva a imaginação. Pense numa bela janela de vidro, criada há 200 anos. Você pode apreciar detalhes físicos do vitral ou da borda de madeira. Mas não há como saber o modo como as pessoas, dois séculos atrás, diziam “Ei! Feche essa janela, está frio” ou “Ei! Abra a janela”. Quem prestou atenção ao dia a dia e a seus códigos relacionais foi a literatura. Aquilo que a gente lê num livro como sendo ficção vai se tornar, futuramente, o registro do cotidiano de uma época. Cartas também faziam isso: registravam falares. É uma característica da escrita.

Sob essa lógica, qual seria a fronteira entre fato e fábula numa curadoria de museu?

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Para alguém que, 20 anos atrás, considerava-se um autor pós-moderno, não há limite entre fato e ficção. Nessa ótica, todos os objetos que estão no Museu da Inocência são reais, mas estão circundados de fabulação na maneira como atribuímos histórias de pertença a cada um deles. Eu falo, nos meus livros, de um refrigerante da Turquia dos anos 1960 que não é Coca-Cola: é uma bebida imaginária, que se baseia num líquido real. O registro dessa bebida faz dela algo que existe, mesmo sendo ela uma invenção. Pense assim: a escritora Marguerite Yourcenar contou que só teve acesso a um gravador em 1928 e, só naquela ocasião, teve a chance de ouvir a voz de seus avôs. A voz do avô de alguém pode parecer um patrimônio que não vai além do valor afetivo individual. Mas quando a gente grava uma voz, e leva-a para um museu, a gente está registrando o modo como alguém verbaliza o dia a dia da História.

Em julho, um incêndio destruiu parte da Cinemateca Brasileira. Como alguém que escreve sobre acervos de arquivos reage a essa tragédia? Como ela afeta a memória do audiovisual?

Além de falar da Cinemateca, é preciso lembrar de outro incêndio no Brasil: o que destruiu o Museu Nacional (na Quinta da Boa Vista, em 2018). Estive lá em 2004, 2005, e levei um dia inteiro para conhecer aquele velho museu. Havia um cheiro particular lá, que evocava um aroma da minha infância. Eu fiquei encantado pela complexidade arqueológica de seu acervo, onde havia de tudo. Era possível sentir a textura do passado que estava lá. Quando li que o museu estava queimando, lágrimas caíram dos meus olhos. Fiquei feliz de saber que estão tentando reconstruí-lo das cinzas. Sobre o cinema... Quando uma cinemateca é guardiã da única cópia de um determinado filme e ela passa por problemas, esse registro fílmico se perde. No Museu da Inocência, venho reunindo trechos de filmes antigos, em preto e branco, que mostrem imagens de Istambul. Tenho negociado com curadores estrangeiros para poder conseguir mais sequências. Não me interessam atrizes ou atores. Só espaços da cidade.

Num texto recente para o 'The New York Times', o senhor declarou que iniciou seu livro mais recente, 'Noites de Peste', sobre uma praga, antes da pandemia. Como foi o processo?

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Essa história, que vai ser editada no Brasil, levou uns quatro anos de trabalho. Ela se passa em 1901 e fala de uma praga de peste bubônica que matou milhões na Ásia, mas não se espalhou pela Europa por conta das quarentenas. Quando eu estava finalizando o livro, veio a covid-19. Resolvi escrever para o The New York Times para que não parecesse que estava escrevendo a partir desta pandemia, mas, sim, de um trabalho anterior a ela. 

Falando em cinema, o senhor foi júri em Cannes, em 2007. Como foi integrar o júri presidido por Stephen Frears, que deu a Palma de Ouro ao romeno '4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias'?

Adoro a versão de Ligações Perigosas que Frears dirigiu e ele nos conduziu bem. A situação mais louca é que eu talvez tenha sido o único jurado da história da Cannes que ia ver os filmes acompanhado de um guarda-costas, pois estava recebendo ameaças à época. Gosto muito da obra do (único diretor turco que ganhou a Palma de Ouro neste século) Nuri Bilge Ceylan (laureado com o prêmio mais cobiçado da Croisette, em 2014, pelo drama Sono de Inverno), que é meu vizinho e escreve muito bem. Eu tive uma relação forte com o cinema dos 16 aos 36 anos. Vi tudo do Rainer Werner Fassbinder, que chegou a fazer três filmes por ano. Vi muitos Herzogs também.

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Lembro de ter visto Orfeu Negro, do Marcel Camus, quando menino. Havia lá um Brasil de cartão postal que evocava fotos dos calendários do Rio de Janeiro que via na minha infância. Do cinema brasileiro, Cidade de Deus é a minha maior lembrança. Estava escrevendo A Maleta do Meu Pai, que fala de favelas, quando vi o filme. Visitei comunidades e descobri vivências que vão além da violência. 

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