Paulo Coelho quer contar sua história para as futuras gerações

O escritor fala sobre a fundação que está criando, as 400 semanas na lista do NYT, tortura, política e literatura contemporânea

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Por Jamil Chade 
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GENEBRA - Num longo corredor, mais de 3 mil livros cobrem as paredes. Estão em dezenas de línguas, com capas das mais variadas cores, como um mosaico de imagens e idiomas. Apenas um aspecto é comum a todos eles, o nome Paulo Coelho. Nas próximas semanas, o brasileiro abrirá em Genebra a sua fundação, dando oportunidade para que milhares de pessoas de todo o mundo acessem a sua obra, em todas as línguas. 

Também colocará em exposição sua primeira máquina de escrever, a mesa onde escreveu O Alquimista e fotos de sua trajetória, além de artigos publicados pelo mundo sobre ele. E sem censura. Seu objetivo é ambicioso, garantir que as futuras gerações possam ter respostas quando perguntarem quem foi Paulo Coelho. 

O autor e sua obra. 'Acredito que meu nome vai permanecer e está bem semeado para isso' Foto: Jamil Chade|Estadão

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Uma amostra do que vai estar à disposição do público será revelada na semana que vem, quando Paulo Coelho será o convidado de honra da Feira do Livro de Genebra, que começa na quarta, 27. Neste domingo, 24, o brasileiro ainda entrará para a história da literatura mundial por estar pela 400.ª semana na lista dos livros mais vendidos do New York Times. Um recorde.

 Paulo Coelho interrompeu sua decisão de não dar entrevistas para ter uma longa conversa com a reportagem do Estado. “Virei um ermitão”, contou, em seu apartamento, num bairro calmo de Genebra, com vista para o Mont Blanc. 

Apesar de ter iniciado a conversa alertando que não falaria de política brasileira, o escritor rompeu seu silêncio e criticou artistas que assinam manifestos, atacou o deputado Jair Bolsonaro e se disse preocupado com o atual “fanatismo” religioso no Brasil, diante da votação do impeachment. “Jesus não usava o nome de Deus”, disse. Coelho também destacou o momento “crítico” da literatura nacional. Eis os principais trechos da entrevista.

Qual é o objetivo de ter uma coleção sobre a sua vida aberta ao público? Essa é a coleção de minha vida, até 2013. Se meu nome permanecer por mais de uma geração, a pergunta que vão fazer é quem foi Paulo Coelho? Acredito que meu nome vai permanecer e está bem semeado para isso. Neste domingo (24), completo 400 semanas na lista dos livros mais lidos do New York Times. Tenho 210 milhões de livros vendidos, atingindo 600 milhões de leitores. Meu último livro, Adultério, já vendeu mais de 4,5 milhões de cópias e é a maior venda minha desde O Zahir (2005). 

E como vai organizar isso? Existem duas fundações. Uma física, aqui em Genebra. Outra será digital, para que qualquer pessoa tenha acesso a tudo que escrevi e que foi escrito, gravado sobre mim. Isso tudo sem censura.

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Essa é uma forma de olhar para o passado? Nunca olho para o passado ou para o futuro. Vivo o presente. A única coisa da qual me orgulho muito são os livros. Com a fundação, essa foi a primeira vez que pude olhar a obra completa, em todas as línguas. Fiquei impressionado. 

O que quer que as pessoas saibam sobre sua trajetória ao ter acesso a todo esse material? Houve um momento em que eu vivia sob duro ataque. Isso já passou. O que me ajudou foi ler biografias. Eu lia e pensava que aconteceu com muita gente. Apenas me chateei por 20 minutos, em 1990. Estava num apart-hotel em São Paulo, quando os ataques começaram. Pensei que não valeria a pena me preocupar.

O sr. mora em Genebra e é reconhecido em todo o mundo. Hoje, o sr. se considera um escritor mundial ou brasileiro?  Eu tenho o sangue brasileiro e a maneira de pensar brasileira. Isso é o que faz uma pessoa. Não é onde você mora. Vejo o mundo de um modo diferente do que um suíço ou um americano. Vejo o mundo como um brasileiro e isso só me traz vantagens. Você é o que você pensa.

De Bill Clinton a líderes asiáticos, por que as pessoas têm o mesmo interesse por você?  A alma do ser humano é muito parecida. Quando nascemos, temos muitas afinidades e elas vão se diluindo à medida que a cultura local vai se impondo. Quando todas as pontes estão destruídas, você vê que ainda resta a ponte cultural. Ela é a esperança hoje. 

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Com tanta intolerância, a ponte cultural pode servir para algo? Espero que sim, mas antes que isso ocorra, acho que as coisas vão piorar antes de melhorar. Olhe o que ocorreu no Congresso brasileiro. As pessoas iam lá e diziam: por Deus. Isso provocou uma galhofa internacional e parecia que era um estado fundamentalista, onde a religião é a base. Você vê isso em todos os lugares. As pessoas usando o nome de Deus para se justificar. 

Como uma pessoa com uma forte espiritualidade, o sr. vê isso como hipocrisia? Não diria hipocrisia, é fanatismo. O Brasil era um país de tolerância e, de repente, está se tornando um país fanático, no sentido de justificar em nome de Deus coisas injustificáveis. 

Houve algum componente nacional na história recente do Brasil que levou a isso? As pessoas precisam de uma justificativa para viver. Buscam a pergunta original: quem é você, quem sou eu? Precisam justificar-se. Olham para suas vidas e dizem bem, eu estou servindo a um poder maior. Mas se você olhar para a vida de Jesus, vê que ele não citava o nome de Deus e fazia o que tinha de fazer. Vivia dentro de uma ética. Tenho visto em minha vida, muitos ateus agindo de modo positivo e pessoas que falam em nome de Deus e cometem atrocidades. 

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Nesse cenário, qual é hoje o papel do artista? Eu sei qual não é o papel: assinar manifesto. Quando vejo um manifesto assinado por intelectuais, eu penso: mostre sua arte, ela é mais relevante que esses manifestos que servem só para dar uma satisfação aos seus pares. 

Da fase que passou no manicômio, há alguma lembrança que ainda alimenta sua escrita? Do manicômio, só trago boas experiências. Primeiro, escrevi um livro a respeito, Veronika Decide Morrer. Segundo, que, quando fui internado, eu me disse que a partir daquele momento poderia fazer qualquer negócio, por ter sido classificado de louco. O que nunca me acrescentou nada na vida foi a prisão, a tortura. Isso sim foi uma coisa que me derrubou e que pode destruir. E me destruiu por sete anos. 

E como o sr. se sente quando escuta um deputado falar de Ustra no Congresso Nacional? Como é que, no Brasil de hoje, uma pessoa fala isso em plena Câmara dos Deputados. Isso é uma afronta ao ser humano, ao País, à Constituição. Isso é um pedido para se voltar ao momento das trevas no Brasil. Bolsonaro conseguiu unir todos contra ele. Ninguém pode admitir que se exalte um torturador. 

Em que momento da história o sr. acha que estamos no Brasil? Eu acho que o Brasil tem instituições suficientemente sólidas para aguentar um tranco como o que vivemos. Tenho certeza de que não haverá um golpe militar. Mas o Brasil será governável por Michel Temer? Tenho minhas dúvidas. E acho que a tendência é de que haja uma deterioração ainda maior. Não acredito que a economia esteja tão ruim quanto a política brasileira. Esse retrocesso em que o Brasil pode entrar pode ter sérias consequências. Tenho minhas dúvidas se eles vão conseguir vender o golpe. Todos se posicionaram contra. O Executivo, Legislativo e Judiciário estão maduros. Mas se as pessoas tiverem a ilusão de que vão acordar em duas semanas e tudo estará resolvido, estamos caminhando para um 7 x 1, rapidamente. Aquela história que entramos todos de mãos dadas, somos todos Neymar. Aí, vem o 7 x 1 e as pessoas vão se perguntar: foi para isso que fui para a rua? Aí, toda a maré vai voltar. 

Como o sr. avalia a qualidade hoje da literatura brasileira? Se você vê uma lista dos livros mais vendidos, não há mais escritores brasileiros. Aqueles monstros sagrados abandonaram a literatura, e os novos não conseguiram surgir. O retrato disso foi a Feira de Frankfurt em 2013. O que você vê é um bando de pessoas que não conseguiu projeção fora nem dentro, estão em um limbo, enquanto outros que são relevantes e que vêm com uma linguagem mais nova, não encontram espaço. O que vejo é que o Brasil, em matéria de literatura, está em um momento muito crítico. Não pela falta de bons escritores. Mas por serem sempre as mesmas figurinhas carimbadas que vão ao Ministério da Cultura, têm seus amigos, financiamento para traduções, se julgam o máximo e não são absolutamente nada.

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