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Patricio Pron faz do leitor aliado em busca pelo passado em 'O Espírito dos Meus Pais'

Escritor argentino partilha traumas, lembranças e feridas da ditadura

Por Alberto Bombig
Atualização:

O enredo de O Espírito dos Meus Pais Continua a Subir na Chuva não é necessariamente revolucionário: escritor atormentado é obrigado a retornar à cidade natal provinciana para acompanhar os derradeiros dias de vida de um ente familiar muito querido; lá chegando, irá vasculhar o passado e se deparar com um mistério; enquanto busca solucioná-lo, o protagonista deixará à mostra suas feridas emocionais que farão a ligação entre os arcos narrativo e dramático da história.

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Fosse somente por isso, O Espírito dos Meus Pais já seria atraente, um curto e bom romance para ser lido à beira da água neste verão brasileiro. Ou estirado no sofá, entre uma e outra série dos serviços de streaming televisivos. Ou em um bar, bebericando algo refrescante. Afinal, ajudar o narrador a juntar as peças do quebra-cabeça que foram espalhadas pelo pai a desfalecer no hospital torna-se um desafio obsessivo, daqueles que prendem o leitor.

Memória da dor. Romance aborda a ditadura argentina (1976-1983), que teve mortos e desaparecidos. Foto: Enrique Marcarian/Reuters

O Espírito dos Meus Pais, no entanto, é mais do que um livro bacaninha: rico em sua simbologia, denso em sua temática, vanguardista em sua prosa e lírico em sua poesia. É também um romance sobre livros e seus autores, um dos traços mais interessantes da literatura produzida neste continente pela atual geração de jovens escritores.

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Há na prosa porosa de Pron (com o perdão pela aliteração irresistível) um gostinho de Roberto Bolaño (de Detetives Selvagens e Estrela Distante), o escritor chileno morto em julho de 2003 e que não para de influenciar autores latino-americanos, a começar pelo título esquisito, porém convidativo, do romance. Outras semelhanças estilísticas são o toque de autoficção, a literatura escrita sobretudo para os apaixonados por ela e a mistura de gêneros numa só obra.

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No romance narrado em primeira pessoa, o protagonista – o tal escritor atormentado que parece ser o próprio Patricio Pron – retorna à Argentina no final da primeira década dos 2000. Na Alemanha, onde vivia, ele perambulava pela casa de conhecidos sempre entorpecido por coquetéis de medicamentos. Em um telefonema para a avó paterna, descobre que o pai está internado num hospital e decide regressar a Rosário, na Província de Santa Fé. 

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Enquanto o velho permanece moribundo, o narrador vasculha seu escritório e tenta recompor a história dos irmãos Burdisso, Alicia e Alberto, ambos desaparecidos, porém em circunstâncias e momentos diferentes.

Alicia foi vítima da ditadura argentina (1976-1983), a mais violenta e sanguinária das ditaduras sul-americanas em número de mortos (30 mil) e de desaparecidos. A então jornalista e estudante de letras foi presa pelas forças de segurança na cidade de Tucumán, em 1977. Alberto some do mapa precisamente no 1.º de junho de 2008, em El Trébol, o vilarejo natal do pai.

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O narrador reconstitui o sumiço de Alberto por meio de artigos de jornais que o pai, jornalista, colecionava em uma pasta, junto com mapas, fotos e anotações. Pron acerta ao reproduzir os tais textos, com seus erros de digitação e gramaticais. Assim, o leitor torna-se um aliado do narrador na colagem desses fragmentos, na busca por solucionar um mistério policial aparentemente banal, mais um caso estúpido de violência na periferia de um país miserável da América do Sul, que bem poderia ser o Brasil, a Colômbia ou o Paraguai.

A partir daí surge a questão: se Alberto era apenas um “idiota faulkneriano”, um sujeito inexpressivo, por que o sumiço dele despertara tanto interesse ao pai do narrador? Desse ponto em diante, será por meio de Alberto que a história chegará até Alicia, que ajudará o protagonista a recompor a militância de seu pai, uma história dentro de outra história dentro de outra história, como um borrão de tinta que mancha várias folhas de papel empilhadas, uma sobre a outra, para usar uma imagem contida no romance de Pron.

Na montagem desse quebra-cabeça, as feridas emocionais do protagonista, que cresceu num país e num ambiente dominados pelo medo, vão se revelando e reconstituindo suas relações com a família e a pátria. Um jogo de simetrias, de aproximações e de distanciamentos entre personagens e gerações: “A geração do meu pai, sim, foi diferente, mas, mais uma vez, havia algo nessa diferença que era também um ponto de encontro, um fio que atravessava as épocas e nos unia apesar de tudo, e era espantosamente argentino: a sensação de estarmos unidos na derrota, pais e filhos”. O Espírito dos Meus Pais é sobretudo uma tentativa de compreensão. “Enquanto eu tentava deixar para trás as fotografias que tinha acabado de ver, compreendi pela primeira vez que todos nós, filhos dos jovens da década de 70, teríamos de desvendar o passado de nossos pais como se fôssemos detetives”, escreve Pron. Os traumas desse período ainda percorrem gerações numa longa e escura jornada América Latina adentro. O ESPÍRITO DOS MEUS PAIS CONTINUA A SUBIR NA CHUVAAutor: Patricio PronTradução: Gustavo PachecoEditora: Todavia (160 págs.,R$ 44,90)

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