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Para atrair novo público, editoras descomplicam clássicos da literatura

Grandes histórias da literatura ganham recursos, como fotos e ilustrações

Foto do author Maria Isabel Miqueletto
Por Maria Isabel Miqueletto
Atualização:

A dúvida que atingiu o estudante carioca Felipe Francisco da Silva, de 14 anos, após terminar seu livro favorito, pode muito bem ter ocorrido também a algum brasileiro que fez a mesma leitura no final do século 19. Se Capitu traiu Bentinho no emblemático Dom Casmurro, Felipe não sabe, mas tem consciência de que ler Machado de Assis abriu sua cabeça. Isso porque foi parte do seu processo de perceber que obras clássicas não eram “bichos de sete cabeças”. 

O museólogo Kassio Alexandre Paiva Rosa, leitor de clássicos Foto: Acervo Pessoal

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“Ficava com medo de ler livros brasileiros clássicos porque todo mundo falava que era muito difícil”, conta. Depois de abrir as portas para o cânone literário, leu de F. Scott Fitzgerald a Charles Dickens, passando por Jorge Amado e George Orwell. Felipe ainda dedica expressivo espaço em sua estante para as obras de Agatha Christie, uma das quatro mulheres entre os 15 autores mais citados pelo público na pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de 2020. A britânica figura como a autora preferida do estudante junto com Machado de Assis.

Editoras têm resgatado histórias raras e clássicos da literatura mundial com uma premissa: adaptar sua linguagem ao mundo atual, com elementos visuais e a inclusão do digital na experiência do leitor. Existe um facilitador: no Brasil, após 70 anos da morte do autor, suas obras caem em domínio público. O País é signatário da Convenção de Berna. Ou seja, é possível publicá-las sem pagar pelos direitos autorais do texto original.

“Essas histórias têm o mesmo potencial de tocar e emocionar as pessoas que tinham antes”, defende Jezio Gutierre, diretor-presidente e editor executivo da Fundação Editora da Unesp. Mas justamente a ideia de que este tipo de literatura é mais difícil de compreender muitas vezes afasta possíveis leitores. “Existe um desafio típico do processo de leitura – não apenas dos clássicos. Nosso objetivo é dessacralizar essa impressão que, em grande parte, me parece injusta e errônea”, explica Gutierre. 

A editora lançou a coleção Clássicos da Literatura Unesp com o intuito de preencher as lacunas de acesso ao cânone literário brasileiro e mundial. “É um empobrecimento de qualquer indivíduo ou população não ter acesso aos clássicos”, opina Gutierre. “Queremos propiciar um canal sólido de vivência literária. Quando um público não tem esse contato, está retirando dele esse tipo de prazer.” 

Em sua coleção Clássicos da Literatura, além de Machado de Assis, a Editora da Unesp pretende publicar outros 10 autores neste ano. Entre eles, José de Alencar, Scott Fitzgerald e Molière. Não se trata só de obras consideradas clássicas – títulos de décadas e séculos passados revelam realidades longínquas que, à primeira vista, podem parecer desconectadas da atualidade. Mas, depois de apresentar seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre contos de fadas antigos originais, Marina Ávila percebeu o contrário: havia muito interesse de pessoas próximas em ler as histórias macabras e sombrias da época. “Isso me ajudou a ver que várias pessoas gostavam desse tipo de literatura, de descobrir o passado”, diz a produtora editorial.

Illustração de Sabrina Gevaerd para 'Mrs. Dalloway', de Virgina Woolf, publicado pela Antofágica Foto: Antofágica

Foi a partir dessa experiência que decidiu fundar a Editora Wish. O livro que estabeleceu a personalidade da editora foi Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet, de Thomas Peckett Prest, que ainda não havia sido publicado no Brasil. “Assim descobrimos o quanto era legal publicar os livros antigos, mas não só os clássicos – e, sim, os raros”, pontua. Por meio de um financiamento coletivo conseguiram fazer a publicação.

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Foi por meio desta campanha que o museólogo Kássio Alexandre Paiva Rosa, 31, teve contato com o universo das histórias antigas. Foi uma resposta à sua curiosidade de entender como eram consumidas a cultura e a arte em outros tempos. “Hoje, pode parecer meio cult, um consumo não hegemônico, mas esse tipo de literatura era o Netflix da época, era o consumo das massas”, diz.

Na Wish, Marina prioriza na curadoria obras que se conectem com o mundo atual. E acredita que, apesar da distância do tempo, a conexão com as histórias pode ser a mesma. “A filosofia por trás de vários livros é parecida com o que a gente vive hoje, e conseguimos nos conectar com os personagens da mesma maneira. Isso demonstra que todos nós somos muito parecidos, mesmo tanto tempo atrás”, afirma. “O objetivo é que seja uma redescoberta do passado e uma aventura para os leitores.”

Aliar as grandes histórias da literatura mundial aos recursos da atualidade: essa é a estratégia da Editora Antofágica. Seu slogan sintetiza a ideia: “clássicos para novos tempos”. “Respeitar, mas interpretar o livro dentro da modernidade, do que estamos passando, da cultura contemporânea, que evoca a estética da Netflix e envolve o mundo digital”, resume Daniel Lameira, diretor criativo nas editoras Antofágica e Aleph. É a alquimia que combina o passado da escrita com o presente dos posfácios, ilustrações de artistas com linguagens visuais contemporâneas e aulas que acompanham cada obra. “É quase como coprotagonizar a edição”, analisa.

O estudante Felipe Francisco da Silva, de 14 anos Foto: Acervo pessoal

A modernização pode ganhar mais importância em um cenário em que os pré-adolescentes de 11 a 13 anos somam 81% dos leitores. É a faixa etária que mais lê no país, apontou a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada em 2020. Na categoria geral, pouco mais da metade da população (52%) tem hábitos de leitura, com a média de livros lidos por ano de 4,2 por pessoa.

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“Outras edições cumprem um papel importante de ter o texto limpo, nossa intenção é ocupar outro espaço que é possível”, pondera Lameira. Cada edição tem cerca de quatro textos extras e a carta de um apresentador. Este último papel já foi ocupado pelo ator e humorista Gregório Duvivier, na obra 1984. O intuito é gerar essa proximidade, apresentar um leitor a outro. 

O estudante Francisco sentiu o impacto em suas leituras. Ele percebe que as ilustrações complementam seu entendimento e o ajudam a imaginar a história. “Foi uma leitura muito diferente, as ilustrações e os textos complementares me fizeram correr atrás de pesquisar algumas coisas, a história ficou mais esclarecida”, conta. 

O impacto tem sido percebido nos números. A edição da Antofágica de Dom Casmurro vendeu, só na pré-venda, 6 mil exemplares. O grupo no Telegram conta com 2,5 mil pessoas, que conversam sobre literatura clássica. “Conseguimos nos conectar com as pessoas no YouTube, com a linguagem da plataforma”, exemplifica. “A possibilidade de conversar no mundo digital faz parte da concepção e da própria escolha do livro.”

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'Dom Casmurro', da Antofágica,ganha ilustrações de Paula Siebra Foto: Antofágica

Foi ao modernizar o diálogo com obras clássicas que a Antofágica construiu uma comunidade em torno da leitura: a “cidade” Antofágica tem prefeito e até a Gazeta Antofagense, que descontraidamente conta sobre a chegada dos novos “moradores”, os autores consagrados. A Editora Wish presenciou o mesmo entre seus leitores. “As pessoas têm confiança na nossa curadoria”, diz Ávila.

Isso está conectado à mentalidade de uma época. A importância da criação de comunidades é apontada pela WGSN, empresa líder em tendências, como uma forte tendência entre consumidores para 2022. Este grupo chamado de “comunitários” é composto principalmente por Millennials e pessoas da Geração X. O museólogo Kássio participa de grupos virtuais da Antofágica e da Wish. “Leitura pode ser algo muito solitário, mas quando temos a oportunidade de ter essas trocas é muito rico”, diz.

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